São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ficção afiada de "O Nome do Bispo" retorna em nova edição


Zulmira Ribeiro Tavares constrói retrato sem retoques da elite do país em livro fundamental

Em entrevista, autora fala de criação, de mulher na literatura, de memória, DOPS e de café pequeno



MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

"Gostaria de ser uma proletária de dedo em riste", diz Zulmira Ribeiro Tavares, 74, ao responder a uma pergunta sobre a elite tupiniquim, classe espinafrada em sua obra capital, "O Nome do Bispo", agora relançada. "Mas não sou", revolve tristemente.
Não, Zulmira é incapaz de entabular palavras de ordem fáceis. Numa atitude que não tem nada de insegurança, mas muito de perfeccionismo, ata e desata os nós dessa entrevista, que levou duas semanas para ser feita, entre e-mails e telefonemas. Não se fala aqui de perfeição de estilo (embora ele importe), mas do rigor de expressar no escrito precisamente o que anda na cabeça, em algum ponto obscuro da mente.
A mesma severidade (como em Paul Valéry, poderíamos dizer?) Zulmira leva para seus romances e contos, que ela chama de "ficções" ou "prosa de ficção". O anseio à perfeição a fez produzir relativamente poucas obras, em exatos 30 anos de carreira, desde "O Japonês dos Olhos Redondos", que nasceu premiada.
Pouco a pouco, a autora vem marcando a literatura nacional com doses moderadas, mas extraordinárias, de ficção. E por falar em prêmio, já levou mais dois, por "O Nome do Bispo", de 1985 (Prêmio Mercedes-Benz), e "Jóias de Família", de 1990 (Prêmio Jabuti).
O fato de não ser "uma proletária de dedo em riste" talvez não a torne uma escritora, por assim dizer, muito popular. A crítica, contudo, adora-a. Roberto Schwarz, de cujo exame não se pode dizer que cai no elogio fácil, sentencia que "a precisão descritiva e analítica da prosa de Zulmira talvez seja única na literatura brasileira atual". Vilma Arêas diz que é "precisamente essa inteligência do texto o que de saída desconcerta o leitor". E Walnice Nogueira Galvão arremata: "Nada pode subsistir intacto a esta pena sem complacência".

"Revisora de mentirinha"
A ópera-bufa "O Nome do Bispo" costuma ser considerada sua "ópera magna". Entrando pelos "cômodos inferiores", o romance penetra na vida de um paulistano quatrocentão e abala a fachada bem-comportada da elite nacional. O atual relançamento, 13 anos após a última edição, obrigou-a a um reexame, segundo ela, "para valer": "De autora, leitora crítica e revisora de mentirinha".
Trata-se de uma obra fincada na paulicéia (a partir de cujo substrato extrai sua universalidade), descrevendo com todas as letras como Joyce, em "Ulisses" lugares e fatos específicos da capital: a praça Buenos Aires, o cemitério da Consolação, a "casa de esquina da rua Maranhão com a Piauí onde se acha instalado o DOPS, a Delegacia de Ordem Política e Social", onde o herói do romance presta um constrangido depoimento.
Zulmira recorda que também esteve ali, para depor ("duas vezes"), durante a ditadura militar. Foi por causa de um conto para revista encabeçada por Roberto Schwarz e Betty Millan. O próprio Schwarz surpreendeu-se: "Você esteve lá?", perguntou, atônito. "Sim, estive", respondeu a sempre discreta Zulmira, que conta ter pedido auxílio a um advogado para saber o que dizer no depoimento, tintim por tintim.
Então, a autora se baseou em fatos da memória (sua e alheia) para compor "O Nome do Bispo", e, embora afirme não ter feito "grande pesquisa", chegou a andar pelo cemitério da Consolação de caderninho em punho, anotando as legendas dos túmulos. Para ela, esses elementos constituem um "chão de realidade, que é transfigurado" na escrita do romance.
"Trabalho com elementos nitidamente materiais, entre os quais pode estar presente, como em "O Nome do Bispo", o corpo. Não para fixá-los enquanto tal, mas porque, de uma forma ou de outra, surgiram como possibilidade ficcional. Não é assim mesmo que trabalha um escritor? Com menor ou maior ênfase, para o que se considera "matéria'?"
Zulmira, que aprecia se esconder atrás do disfarce masculino em muitas de suas histórias ("Ou por me divertirem mais? Ou por gostar de trabalhar com aquilo que não sou?"), arrisca uma hipótese sobre a decantada questão da literatura dita feminina. Ela acha que o recorte pode ser feito, mas "num segundo momento, depois da avaliação dos textos". Do ponto de vista sociológico ou antropológico (e aí podemos incluir também discursos dos negros, homossexuais, operários etc.), "a condição histórica da mulher suscita de imediato, nesse segundo momento, a distinção".
"Também pelo fato de o termo sexo masculino confundir-se com o humano simplesmente. O feminino constitui o outro, e dele se destaca. Você pensaria em uma antologia do conto masculino? Ainda que encabeçada por uma obra de Ernest Hemingway?", brinca.

Ficção e realidade
"Livros são como fisionomias", diz, mencionando sua admiração pelos "Relatórios" escritos por Graciliano Ramos, quando prefeito de Palmeira dos Índios (AL), entre 1929 e 1930. "Lembram certos trechos de filmes documentários por produzirem, na secura e na direção pertinente de sua escrita, forte efeito estético, ou seja: por transmitirem a forma singular com que a ficção nos apresenta aspectos da realidade."
Quando o rigor se aplica ao próprio texto, a autora é implacável. Escreve e refaz, destrói e começa tudo de novo. Não gosta de falar muito da ficção que vem escrevendo há alguns anos. Terminou a primeira parte ("mais de 60 páginas"), interrompida com a morte do pai. Embora já tenha em mente a segunda, "desconfia" que venha a cortar e modificar a primeira.
Zulmira não considera seus livros algo fechado. Inspirada por algum tema no início, constantemente se vê, no decorrer do trabalho, "perseguidora de motivos que não haviam se apresentado inicialmente, o que talvez me leve mesmo a desatender aquele inicial". "Trocando em miúdos: como a existência não se fecha, não oferece respostas absolutas, ao terminar um texto, ainda que formalmente ofereça ele um traçado forte, subjaz nele uma não-determinação. Uma espécie de fracasso para o que persegui no início." E por falar em fracasso...?


Texto Anterior: Programação
Próximo Texto: "O Nome do Bispo": Inversão carnavalesca garante originalidade
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.