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DRAUZIO VARELLA
O mateiro Luiz Coelho
Seu Luiz conhece a vegetação
amazônica como ninguém.
Na mata, identifica um número
incrível de famílias pela anatomia das folhas, dos frutos e pelo
cheiro da casca lascada com carinho pelo terçado inseparável.
Muitas vezes reconhece também
o gênero e mesmo a espécie: o nome popular e o científico. Vi botânicos de renome internacional
humildes diante de sua sabedoria
cabocla.
Luiz Coelho nasceu na praia do
Tracajá, em Tefé, em 1929. O pai
era proprietário de um regatão,
barco-gaiola que visitava as comunidades à beira do Japurá e
dos Solimões carregado de mantimentos, panelas, cachaça, cartuchos de espingarda e combustível
para lamparina.
A família saiu de Tefé por causa
do padre. Em 1934, cansado de
tanta viagem, o patriarca decidiu
botar roça numa área mais tarde
contestada pela igreja. Como resultado do litígio, foi forçado a
entregar a plantação e a migrar
com a mulher e os cinco filhos para dois quartos alugados na Vila
Municipal, em Manaus.
Lá, aos seis anos, seu Luiz pegou
a primeira malária:
-Quando dei fé de mim estava
internado na Santa Casa, único
hospital da cidade. O tratamento
era com quinopólio, óleo de mamona misturado com outro líquido, servido num frasco de vidro,
cheiro forte e gosto horrível, para
soltar o intestino. Depois vinha a
injeção doída de Paludão, numas
ampolas azuis que chegavam da
Alemanha.
Parou de estudar quando completou o quarto ano primário, para plantar abacaxi e mandioca,
que o pai transportava em lombo
de burro para o Mercado Municipal. A cidade era muito diferente:
-Manaus tinha malária por
toda parte. Metade da população
andava descalça, a diversão era ir
às procissões ver o pessoal do interior andar desequilibrado em cima dos sapatos. O único jornal da
cidade, o "Jornal do Comércio",
na Eduardo Ribeiro, tocava uma
sirene para anunciar os atropelamentos numa folha pregada na
porta. Só existiam os bondes e
meia dúzia de carros com manivela e cobertura de lona, antecessores do Ford bigode. Os seringalistas ficavam hospedados no
Grande Hotel; dizem que acendiam charuto com notas de dez
cruzeiros.
Aos 25 anos, abandonou a roça
por causa de um anúncio do Inpa
(Instituto Nacional de Pesquisas
da Amazônia): precisavam de
gente para trabalhar na coleta de
material botânico.
Recebeu uma prensa, tesoura,
jornal velho, caderneta de anotações e um guia de orientação. As
primeiras coletas foram nas cercanias da cidade, mas, no final
daquele ano de 1954, voou nas
asas da Panair para uma excursão botânica de 42 dias, em Rio
Branco, chefiada por aquele que
seria seu grande mestre: dr. William Rodrigues, um dos mais respeitados botânicos brasileiros.
Em 1959, viajou pela primeira
vez com um estrangeiro: o botânico japonês Takeushi. Fizeram coletas em São Gabriel da Cachoeira, no alto rio Negro, a caminho
da fronteira com a Colômbia.
Construída ao lado da igreja dos
padres salesianos oriundos da
Itália e da Alemanha, a cidade
era um povoado índio que só falava a língua dos tucanos. O único capaz de falar português com
fluência era seu Graciliano, comerciante maranhense.
O comércio era feito na base de
troca, os índios não tinham noção
dos valores. Uma mercadoria que
apregoavam a dez cruzeiros,
diante do espanto do comprador,
tinha o preço imediatamente reduzido para dez centavos. Comida, só em conserva, peixe ou caça;
o Inpa dava a espingarda, mas só
era permitido matar para comer.
Durante uma missa, o botânico
Takeushi, encantado com os hábitos da cidade índia, ao estranhar o véu das fiéis, perguntou:
"Luiz, por que essas mulheres
usam mosquiteiro na cabeça?".
Casado, pai de sete filhos, além
da parceria com William Rodrigues, que durou mais de 30 anos,
seu Luiz trabalhou com Marlene
Freitas, Luiz Emídio, Aparício
Duarte, Mussa Pires, Hernandes
Freitas, Graziela Barroso e outros.
Foi mateiro dos mais renomados botânicos internacionais que
passaram pela Amazônia: Prance, Scott Mori e Douglas Daly
(Jardim Botânico de Nova York),
Ubreville (Universidade de Paris), Kubix (Universidade de
Hamburgo) e Alwyn Gentry,
morto em acidente aéreo nos Andes peruanos.
Nessa convivência, aprendeu
teoria, rigor científico e adquiriu
respeito pelos pesquisadores estrangeiros:
-Ao contrário do que dizem,
eles gostam de ensinar e permitem muito mais acesso ao material colhido do que os brasileiros.
Nos anos 1970, foi contratado
pelo projeto Radan Brasil, criado
com a finalidade de identificar os
recursos naturais amazônicos.
Junto com cartografistas, botânicos, geólogos, médicos e enfermeiros, montavam uma base na floresta para levantar os recursos
potenciais. De lá, saía o helicóptero com os rapelistas para abrir
uma clareira com motosserra. A
equipe descia em seguida, e os picadeiros abriam picadas (espinhas de peixe) de 10 km a 15 km,
no facão.
Subiram o rio Negro, de Santa
Isabel até São Gabriel, de onde
entraram pelos afluentes para
atingir Pucui, Pari-Cachoeira,
Iauaretê (fronteira com Colômbia), Tabatinga (fronteira com
Peru), Cucui (fronteira com Venezuela). Percorreram o rio Japurá e o Aripuanã, afluente do Madeira, igarapé por igarapé. Depois, o Tapajós, onde montaram o
acampamento em Itaituba, área
de garimpo célebre pelas mortes, e
desceram até as cachoeiras do rio
Jamanxim. Chegaram até Roraima, Itaituba e Jacareacanga, no
Pará.
Aposentado no Inpa, seu Luiz
aos 75 anos, trabalha num projeto de pesquisas da Unip. Pai de sete filhos, muitos netos, contador
de histórias na melhor tradição
brasileira, Luiz Coelho carrega
apenas um desgosto:
-Nós, mateiros, somos uma espécie ameaçada de extinção.
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