São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2004

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DRAUZIO VARELLA

O mateiro Luiz Coelho

Seu Luiz conhece a vegetação amazônica como ninguém. Na mata, identifica um número incrível de famílias pela anatomia das folhas, dos frutos e pelo cheiro da casca lascada com carinho pelo terçado inseparável. Muitas vezes reconhece também o gênero e mesmo a espécie: o nome popular e o científico. Vi botânicos de renome internacional humildes diante de sua sabedoria cabocla.
Luiz Coelho nasceu na praia do Tracajá, em Tefé, em 1929. O pai era proprietário de um regatão, barco-gaiola que visitava as comunidades à beira do Japurá e dos Solimões carregado de mantimentos, panelas, cachaça, cartuchos de espingarda e combustível para lamparina.
A família saiu de Tefé por causa do padre. Em 1934, cansado de tanta viagem, o patriarca decidiu botar roça numa área mais tarde contestada pela igreja. Como resultado do litígio, foi forçado a entregar a plantação e a migrar com a mulher e os cinco filhos para dois quartos alugados na Vila Municipal, em Manaus.
Lá, aos seis anos, seu Luiz pegou a primeira malária:
-Quando dei fé de mim estava internado na Santa Casa, único hospital da cidade. O tratamento era com quinopólio, óleo de mamona misturado com outro líquido, servido num frasco de vidro, cheiro forte e gosto horrível, para soltar o intestino. Depois vinha a injeção doída de Paludão, numas ampolas azuis que chegavam da Alemanha.
Parou de estudar quando completou o quarto ano primário, para plantar abacaxi e mandioca, que o pai transportava em lombo de burro para o Mercado Municipal. A cidade era muito diferente:
-Manaus tinha malária por toda parte. Metade da população andava descalça, a diversão era ir às procissões ver o pessoal do interior andar desequilibrado em cima dos sapatos. O único jornal da cidade, o "Jornal do Comércio", na Eduardo Ribeiro, tocava uma sirene para anunciar os atropelamentos numa folha pregada na porta. Só existiam os bondes e meia dúzia de carros com manivela e cobertura de lona, antecessores do Ford bigode. Os seringalistas ficavam hospedados no Grande Hotel; dizem que acendiam charuto com notas de dez cruzeiros.
Aos 25 anos, abandonou a roça por causa de um anúncio do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia): precisavam de gente para trabalhar na coleta de material botânico.
Recebeu uma prensa, tesoura, jornal velho, caderneta de anotações e um guia de orientação. As primeiras coletas foram nas cercanias da cidade, mas, no final daquele ano de 1954, voou nas asas da Panair para uma excursão botânica de 42 dias, em Rio Branco, chefiada por aquele que seria seu grande mestre: dr. William Rodrigues, um dos mais respeitados botânicos brasileiros.
Em 1959, viajou pela primeira vez com um estrangeiro: o botânico japonês Takeushi. Fizeram coletas em São Gabriel da Cachoeira, no alto rio Negro, a caminho da fronteira com a Colômbia. Construída ao lado da igreja dos padres salesianos oriundos da Itália e da Alemanha, a cidade era um povoado índio que só falava a língua dos tucanos. O único capaz de falar português com fluência era seu Graciliano, comerciante maranhense.
O comércio era feito na base de troca, os índios não tinham noção dos valores. Uma mercadoria que apregoavam a dez cruzeiros, diante do espanto do comprador, tinha o preço imediatamente reduzido para dez centavos. Comida, só em conserva, peixe ou caça; o Inpa dava a espingarda, mas só era permitido matar para comer. Durante uma missa, o botânico Takeushi, encantado com os hábitos da cidade índia, ao estranhar o véu das fiéis, perguntou: "Luiz, por que essas mulheres usam mosquiteiro na cabeça?".
Casado, pai de sete filhos, além da parceria com William Rodrigues, que durou mais de 30 anos, seu Luiz trabalhou com Marlene Freitas, Luiz Emídio, Aparício Duarte, Mussa Pires, Hernandes Freitas, Graziela Barroso e outros.
Foi mateiro dos mais renomados botânicos internacionais que passaram pela Amazônia: Prance, Scott Mori e Douglas Daly (Jardim Botânico de Nova York), Ubreville (Universidade de Paris), Kubix (Universidade de Hamburgo) e Alwyn Gentry, morto em acidente aéreo nos Andes peruanos.
Nessa convivência, aprendeu teoria, rigor científico e adquiriu respeito pelos pesquisadores estrangeiros:
-Ao contrário do que dizem, eles gostam de ensinar e permitem muito mais acesso ao material colhido do que os brasileiros.
Nos anos 1970, foi contratado pelo projeto Radan Brasil, criado com a finalidade de identificar os recursos naturais amazônicos. Junto com cartografistas, botânicos, geólogos, médicos e enfermeiros, montavam uma base na floresta para levantar os recursos potenciais. De lá, saía o helicóptero com os rapelistas para abrir uma clareira com motosserra. A equipe descia em seguida, e os picadeiros abriam picadas (espinhas de peixe) de 10 km a 15 km, no facão.
Subiram o rio Negro, de Santa Isabel até São Gabriel, de onde entraram pelos afluentes para atingir Pucui, Pari-Cachoeira, Iauaretê (fronteira com Colômbia), Tabatinga (fronteira com Peru), Cucui (fronteira com Venezuela). Percorreram o rio Japurá e o Aripuanã, afluente do Madeira, igarapé por igarapé. Depois, o Tapajós, onde montaram o acampamento em Itaituba, área de garimpo célebre pelas mortes, e desceram até as cachoeiras do rio Jamanxim. Chegaram até Roraima, Itaituba e Jacareacanga, no Pará.
Aposentado no Inpa, seu Luiz aos 75 anos, trabalha num projeto de pesquisas da Unip. Pai de sete filhos, muitos netos, contador de histórias na melhor tradição brasileira, Luiz Coelho carrega apenas um desgosto:
-Nós, mateiros, somos uma espécie ameaçada de extinção.


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