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São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2003

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Medo do novo deixa TV ruim

NELSON HOINEFF
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na tarde da última terça-feira, Gugu Liberato foi entrevistado ao vivo por quatro outros apresentadores de TV. Uma única frase foi dita por todos: "Precisamos repensar a nossa responsabilidade". Ela apareceu com a mesma gravidade que cada um costuma impingir aos seus programas. Acusando Gugu e tirando uma casquinha de sua audiência, aproveitaram também para fazer uma profissão de fé.
Não precisavam. Nenhum deles tem nenhuma culpa do que aconteceu. Nem os bandidos ou os que gostariam de sê-lo que fazem suas bravatas no ar. Traficar, matar é o seu negócio. O da televisão está sendo transformá-los em heróis.
Por isso a programação da TV aberta e o PCC guardam tantas semelhanças. Ambos pensam no proveito imediato; não se importam com o mal que possam causar às suas vítimas; tem visões peculiares de comportamento ético; carecem de talento para ganhar a vida de forma honrada.
Deter-se no horário de acesso é um rico exercício. Suas atrações são idênticas na forma e no conteúdo. Superpõem seus vácuos criativos na busca de cinco mesquinhos pontos que, nesse contexto, configuram um bom desempenho de audiência.
É estatisticamente impossível que não existam formatos capazes de fazer a mesma pontuação nesse horário. Programas que possam propor à audiência experiências mais estimulantes de televisão e aos empresários negócios mais bem-sucedidos. Formas capazes de atrair consumidores sem levá-los para emboscadas.
Formatos assim existem. Não são implementados porque há no seu caminho a barreira do medo. Um medo pior que o de tiros. Medo das diferenças. Medo de qualquer coisa que não se pareça com o que existe à exaustiva repetição.
Essa fobia do novo se alimenta de uma estrutura de criação monolítica, que estrangula a circulação de idéias originais.
É num terreno assim que floresce não apenas a glorificação da bandidagem, mas a inversão generalizada de valores éticos, morais e artísticos. O conteúdo vulgar que está diante do espectador tem o efeito de desestimular sua capacidade de discernimento. O mito da eficiência empresarial da TV brasileira está em crise. Os que hoje desenham uma televisão ruim estão moldando também uma televisão deficitária. Na semana passada, o ministro José Dirceu voltou a negar que esteja em curso um Proex da televisão. Se estivesse, ele não poderia deixar de levar em conta a maneira pela qual estão assentados os seus modelos de produção.
Culpar um apresentador, qualquer que seja, por fraudes e glorificação de criminosos, é o mesmo que culpar mamões por nascerem em mamoeiros. Não é focando em Gugu ou nos programas sensacionalistas de fim de tarde que se vai mudar a televisão; mas sim examinando o sistema que promove a hegemonia desses valores na TV. É ele que está fraudando a boa fé do povo, insinuando a mentira de que uma televisão será tão mais bem-sucedida quanto pior. A TV é ruim simplesmente porque há o pavor generalizado que se possa fazê-la melhor.


Nelson Hoineff, 55, é jornalista, produtor e diretor de televisão


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