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MULTIMÍDIA
Lisboa é musa inspiradora dos escritores
O jornal espanhol
"El Pais" reuniu em conversa o escritor italiano Antonio Tabucchi e o luso Cardoso Pires, dois admiradores da capital portuguesa; o bate-papo resultou em um dos melhores retratos da cidade
Antonio Tabucchi, que é fascinado pela obra de Fernando Pessoa
do "El Pais Semanal"
John dos Passos a chamou de
"uma nostalgia adormecida". Antoine de Saint-Exupéry a definiu
como "um paraíso claro e triste". O
marquês de Sade a inventou como
"apaixonada" entre rancores. Tirso de Molina não hesitou em qualificá-la como "a oitava maravilha".
Ela, a romântica Lisboa, sempre
foi fonte de inspiração para artistas
e escritores. E não é diferente para
os artistas contemporâneos.
O italiano Antonio Tabucchi, por
exemplo, lhe homenageou em seu
"Réquiem" (1994) e a converteu no
personagem mais famoso de "Afirma Pereira".
Recentemente, o escritor português José Cardoso Pires, grande
conhecedor da cidade, traçou um
retrato amável e poético dessa metrópole decadente em seu livro
"Lisboa - Livro de Bordo".
Pouco antes que Cardoso Pires
fosse internado em uma clínica devido a um derrame cerebral, o jornal espanhol "El Pais Semanal"
reuniu estes dois fiéis admiradores
de Lisboa para conversar sobre a
cidade e seu destino.
Os dois amigos evocaram recordações e analisaram seus dramas,
ao traçar um retrato da capital portuguesa.
Leia a seguir os principais trechos do bate-papo entre os dois escritores:
Pergunta - Como vocês dois se
conheceram?
Antonio Tabucchi - Conheci Pires
em 1968 em Lisboa, na casa do poeta Aleixandre O'Neill. Eu era um
jovem de 20 e poucos anos que tinha uma namorada, minha atual
mulher, aqui. Não tínhamos um
centavo e Aleixandre me dava
abrigo. Eu tinha comprado um tortellini e fiambrina, que é uma imitação do York que devem fazer
com cabras mortas. Estávamos
preparando a massa quando Pires
chegou. Nós o convidamos para
comer, mas ele olhou aquilo e disse: "Por que não vamos comer uma
sardinada?". Aleixandre foi, e eu,
com muito orgulho, fiquei para comer meus tortellinis. Naquela
mesma noite, eu comecei a ler o
manuscrito de "O Delfim", que
Cardoso Pires ainda não havia publicado. Desde esse dia tenho uma
grande admiração por ele.
José Cardoso Pires - Eu nem me
lembrava desse encontro. Tabucchi me lembrou dele por estes dias.
Foi uma época boa, em que nenhum de nós ganhava um tostão,
mas nos divertíamos muito. Aqueles anos sempre me evocam Cascais, que fazia parte de uma corte
de bem-nascidos e reis. Não só d.
Juan Carlos e seu pai estavam ali,
os reis da Itália, Bulgária e Romênia também se exilaram naquela
colônia. Toda a polícia tinha sido
avisada para não incomodar ninguém na região. Por isso tinha-se
muito mais liberdade do que no
resto do país. Eram pessoas mais
cultas, politicamente mais bem informadas. Cascais era, ao mesmo
tempo, um paraíso e um inferno.
Pergunta - Vocês dois são apaixonados pela Lisboa decadente e melancólica. Como foi que começou
esse idílio?
Tabucchi - Eu embarquei no veleiro dele, porque Pires fala de Lisboa como um veleiro ancorado às
margens do rio Tejo. Eu sempre digo que sou o servente do barco e ele
é o comandante do veleiro.
Pires - Eu odeio ser obrigado a falar bem de alguém quando este alguém está presente. Sempre digo
que há coisas que só se dizem pelas
costas (risos). Posso dizer que conheço muito bem a literatura sobre
Lisboa. É a cidade do mundo de
que mais gosto. Os portugueses
acham que a literatura portuguesa
está cheia de Lisboa, como a pintura ou a escultura. Isso é falso. Ademais, Lisboa, ao contrário da cidade do Porto, não tem sentido monumental. Em meu último livro,
"Lisboa - Livro de Bordo", pode-se
comprovar isso. Eu não falo de nenhum monumento, porque nós
não temos grandes monumentos,
ao contrário da Espanha. O perigo
que normalmente acontece em
países como a Espanha é que, como se tropeça a cada dois passos
com maravilhosas catedrais românticas e fantásticos monumentos, dá-se pouco valor àquela beleza. Eu agora dou muito mais valor
à Fundação Gulbenkian do que à
Torre de Belém.
Pergunta - E a literatura?
Pires - Falando sobre livros, e me
incomoda muito fazer isto porque
Tabucchi está aqui, creio que seu
"Réquiem" é um livro excepcional.
É o único livro que descreve a cidade por sua temperatura. Provavelmente, isso só pode ser compreendido por um lisboeta. É um grande
retrato de Lisboa que descreve perfeitamente o humor da cidade.
Também gosto de um livro de Dinis Machado, porque lembra muito a minha infância lisboeta, aquela infância na qual os garotos tinham uma capacidade criativa
enorme. Outra novela notável é
"Alta Sociedade", de Maria Velho
da Costa. Ao falar de todos eles,
nunca me esqueço de observar a
qualidade literária e da forma. Essas são as coisas que me interessam. Analisando essas obras que
eu citei, podemos verificar que temos apenas quatro ou cinco grandes livros sobre Lisboa. Por isso digo que a literatura portuguesa não
está cheia de Lisboa, como falsamente se acredita. Nem mesmo a
poesia, nem a pintura.
Tabucchi - Eu queria fazer um comentário sobre o que Pires disse,
que Lisboa é uma cidade pouco
monumental. De qualquer modo,
é uma cidade que homenageia uns
cantores de uma cidade popular e,
às vezes, muito baixa, de taverna,
que não são escolhidos na literatura porque são autores pouco reconhecidos. Antonio Oliveira, um
frade que atravessou todos os bordéis de Lisboa, nos deixou como
ninguém a autêntica linguagem
daquela época, do século 16. As
blasfêmias, a linguagem popular,
as fofocas das comadres. E também há Pessoa, que eu adoro. Ninguém lembra que esse homem é o
representante de uma Lisboa que
desenha perfeitamente aquela
época de meados do século.
Pires - Eu também queria chamar
a atenção para outra questão. A
avenida da Liberdade inteira não
tem nenhuma estátua de escritor.
É uma rua bastante convencional,
mas triste. A escultura é a parte
mais pobre de nossa arte.
Tabucchi - Eu adoro a estátua de
Fernando Pessoa, junto à qual todos os turistas que passam por Lisboa tiram fotografias. A estatuária
da literatura na Itália sempre foi
fúnebre. Isso pertence a uma cultura burocrática das prefeituras
que homenagearam aquelas figuras. Mas, infelizmente, tem de ser
assim. Sobre a temperatura de Lisboa, quero enfatizar que é uma
temperatura de saudade, mas que
também tem uma carga vital. Naquela época, Lisboa provocava um
certo desconcerto, uma certa inquietude e, ao mesmo tempo,
transmitia uma grande vitalidade.
Pires - Essa é uma leitura, é a sua
natureza e o seu modo de ver Lisboa. Seu "Réquiem" retrata muito
bem essa Lisboa, mas tenho dúvidas sobre o filme, no sentido de
descrever o humor que só um lisboeta possui. Isso não se encontra.
É um tipo de humor "sacaninha".
Tabucchi - Tem razão. É um risco,
mas temos de desafiá-lo. O humor
lisboeta é muito difícil de retratar.
No meu bairro aconteceu uma coisa muito engraçada. Um dia fui
comprar uma garrafa de champanhe em uma loja próxima da minha casa. No dia anterior tinha visto um monte de garrafas e levantei
com vontade de beber uma. Fui até
lá e pedi champanhe. A mulher
que atendia me disse que haviam
acabado. "Como é possível?", perguntei. E ela me respondeu: "Você
acha que é o único cliente fino que
temos no bairro?". Fui para casa
com o rabo entre as pernas. Foi
uma maravilha.
Pergunta - Mudou muito desde a
Lisboa dos anos 60 para a atual. A
cidade está perdendo sua alma,
seu espírito?
Pires - Creio que sim. Há uma diferença fundamental. Aquela cidade era uma cidade fechada. Durante 40 anos foi uma cidade vigiada,
uma cidade administrada por militares. O militar só é competente se
golpeia pessoas indefesas. Hoje a
cidade se abre cada vez mais. Agora atravessamos uma etapa de
grande liberdade criativa.
Tabucchi - Eu acho que Lisboa se
complicou muito. É uma cidade
que triplica todos os dias os habitantes do centro urbano e que não
tem capacidade para tanto. Todo
mundo vem trabalhar aqui. A velha Lisboa continua igual, mas mudou a sociologia e a antropologia
da região.
Pires - Não estou de acordo com
Tabucchi. É verdade que todos os
dias entram na cidade o mesmo
número de pessoas que nela habitam -ou mais- e isto desorienta
tudo. Mas é algo que já acontecia
antes. Esta cidade é profundamente tenebrosa, está sempre em
obras. A corrupção econômica fez
coisas terríveis. Durante a ditadura, a corrupção foi manipulada pelos militares, mas agora a corrupção vem dos urbanistas. É uma
corrupção de incompetentes. Hoje
a burocracia existente não sabe resolver os grandes problemas de
Lisboa. É uma cidade de uma pouca vergonha miserável, de uma incompetência total. Estão remendando a cidade todos os dias. Não
há nem projeto urbanístico.
Tabucchi - Os urbanistas deveriam transferir todos os ministérios para fora da cidade. Os funcionários bloqueiam diariamente Lisboa e essa seria uma solução para
os congestionamentos. Por outro
lado, Lisboa tem algo que eu adoro, os jardins. É uma cidade que
ainda mantém jardins extremamente agradáveis, onde ainda há
uma vida tolerável, humana e civilizada. No resto das cidades européias, os jardins estão desaparecendo. Felizmente, Lisboa mantém esses refúgios. Com relação ao
que Pires dizia sobre a corrupção,
eu gostaria de dizer que ela também acontece em outras cidades,
como em Florença (Itália). Mas pelo menos aqui não tapam o mesmo
buraco três vezes durante a época
de inverno.
²
Tradução
Claudia Rossi
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