São Paulo, segunda, 21 de setembro de 1998

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MULTIMÍDIA
Lisboa é musa inspiradora dos escritores

O jornal espanhol "El Pais" reuniu em conversa o escritor italiano Antonio Tabucchi e o luso Cardoso Pires, dois admiradores da capital portuguesa; o bate-papo resultou em um dos melhores retratos da cidade Antonio Tabucchi, que é fascinado pela obra de Fernando Pessoa do "El Pais Semanal"

John dos Passos a chamou de "uma nostalgia adormecida". Antoine de Saint-Exupéry a definiu como "um paraíso claro e triste". O marquês de Sade a inventou como "apaixonada" entre rancores. Tirso de Molina não hesitou em qualificá-la como "a oitava maravilha".
Ela, a romântica Lisboa, sempre foi fonte de inspiração para artistas e escritores. E não é diferente para os artistas contemporâneos.
O italiano Antonio Tabucchi, por exemplo, lhe homenageou em seu "Réquiem" (1994) e a converteu no personagem mais famoso de "Afirma Pereira".
Recentemente, o escritor português José Cardoso Pires, grande conhecedor da cidade, traçou um retrato amável e poético dessa metrópole decadente em seu livro "Lisboa - Livro de Bordo".
Pouco antes que Cardoso Pires fosse internado em uma clínica devido a um derrame cerebral, o jornal espanhol "El Pais Semanal" reuniu estes dois fiéis admiradores de Lisboa para conversar sobre a cidade e seu destino.
Os dois amigos evocaram recordações e analisaram seus dramas, ao traçar um retrato da capital portuguesa.
Leia a seguir os principais trechos do bate-papo entre os dois escritores:

Pergunta - Como vocês dois se conheceram?
Antonio Tabucchi -
Conheci Pires em 1968 em Lisboa, na casa do poeta Aleixandre O'Neill. Eu era um jovem de 20 e poucos anos que tinha uma namorada, minha atual mulher, aqui. Não tínhamos um centavo e Aleixandre me dava abrigo. Eu tinha comprado um tortellini e fiambrina, que é uma imitação do York que devem fazer com cabras mortas. Estávamos preparando a massa quando Pires chegou. Nós o convidamos para comer, mas ele olhou aquilo e disse: "Por que não vamos comer uma sardinada?". Aleixandre foi, e eu, com muito orgulho, fiquei para comer meus tortellinis. Naquela mesma noite, eu comecei a ler o manuscrito de "O Delfim", que Cardoso Pires ainda não havia publicado. Desde esse dia tenho uma grande admiração por ele.
José Cardoso Pires - Eu nem me lembrava desse encontro. Tabucchi me lembrou dele por estes dias. Foi uma época boa, em que nenhum de nós ganhava um tostão, mas nos divertíamos muito. Aqueles anos sempre me evocam Cascais, que fazia parte de uma corte de bem-nascidos e reis. Não só d. Juan Carlos e seu pai estavam ali, os reis da Itália, Bulgária e Romênia também se exilaram naquela colônia. Toda a polícia tinha sido avisada para não incomodar ninguém na região. Por isso tinha-se muito mais liberdade do que no resto do país. Eram pessoas mais cultas, politicamente mais bem informadas. Cascais era, ao mesmo tempo, um paraíso e um inferno.
Pergunta - Vocês dois são apaixonados pela Lisboa decadente e melancólica. Como foi que começou esse idílio?
Tabucchi -
Eu embarquei no veleiro dele, porque Pires fala de Lisboa como um veleiro ancorado às margens do rio Tejo. Eu sempre digo que sou o servente do barco e ele é o comandante do veleiro.
Pires - Eu odeio ser obrigado a falar bem de alguém quando este alguém está presente. Sempre digo que há coisas que só se dizem pelas costas (risos). Posso dizer que conheço muito bem a literatura sobre Lisboa. É a cidade do mundo de que mais gosto. Os portugueses acham que a literatura portuguesa está cheia de Lisboa, como a pintura ou a escultura. Isso é falso. Ademais, Lisboa, ao contrário da cidade do Porto, não tem sentido monumental. Em meu último livro, "Lisboa - Livro de Bordo", pode-se comprovar isso. Eu não falo de nenhum monumento, porque nós não temos grandes monumentos, ao contrário da Espanha. O perigo que normalmente acontece em países como a Espanha é que, como se tropeça a cada dois passos com maravilhosas catedrais românticas e fantásticos monumentos, dá-se pouco valor àquela beleza. Eu agora dou muito mais valor à Fundação Gulbenkian do que à Torre de Belém.
Pergunta - E a literatura?
Pires -
Falando sobre livros, e me incomoda muito fazer isto porque Tabucchi está aqui, creio que seu "Réquiem" é um livro excepcional. É o único livro que descreve a cidade por sua temperatura. Provavelmente, isso só pode ser compreendido por um lisboeta. É um grande retrato de Lisboa que descreve perfeitamente o humor da cidade. Também gosto de um livro de Dinis Machado, porque lembra muito a minha infância lisboeta, aquela infância na qual os garotos tinham uma capacidade criativa enorme. Outra novela notável é "Alta Sociedade", de Maria Velho da Costa. Ao falar de todos eles, nunca me esqueço de observar a qualidade literária e da forma. Essas são as coisas que me interessam. Analisando essas obras que eu citei, podemos verificar que temos apenas quatro ou cinco grandes livros sobre Lisboa. Por isso digo que a literatura portuguesa não está cheia de Lisboa, como falsamente se acredita. Nem mesmo a poesia, nem a pintura.
Tabucchi - Eu queria fazer um comentário sobre o que Pires disse, que Lisboa é uma cidade pouco monumental. De qualquer modo, é uma cidade que homenageia uns cantores de uma cidade popular e, às vezes, muito baixa, de taverna, que não são escolhidos na literatura porque são autores pouco reconhecidos. Antonio Oliveira, um frade que atravessou todos os bordéis de Lisboa, nos deixou como ninguém a autêntica linguagem daquela época, do século 16. As blasfêmias, a linguagem popular, as fofocas das comadres. E também há Pessoa, que eu adoro. Ninguém lembra que esse homem é o representante de uma Lisboa que desenha perfeitamente aquela época de meados do século.
Pires - Eu também queria chamar a atenção para outra questão. A avenida da Liberdade inteira não tem nenhuma estátua de escritor. É uma rua bastante convencional, mas triste. A escultura é a parte mais pobre de nossa arte.
Tabucchi - Eu adoro a estátua de Fernando Pessoa, junto à qual todos os turistas que passam por Lisboa tiram fotografias. A estatuária da literatura na Itália sempre foi fúnebre. Isso pertence a uma cultura burocrática das prefeituras que homenagearam aquelas figuras. Mas, infelizmente, tem de ser assim. Sobre a temperatura de Lisboa, quero enfatizar que é uma temperatura de saudade, mas que também tem uma carga vital. Naquela época, Lisboa provocava um certo desconcerto, uma certa inquietude e, ao mesmo tempo, transmitia uma grande vitalidade.
Pires - Essa é uma leitura, é a sua natureza e o seu modo de ver Lisboa. Seu "Réquiem" retrata muito bem essa Lisboa, mas tenho dúvidas sobre o filme, no sentido de descrever o humor que só um lisboeta possui. Isso não se encontra. É um tipo de humor "sacaninha".
Tabucchi - Tem razão. É um risco, mas temos de desafiá-lo. O humor lisboeta é muito difícil de retratar. No meu bairro aconteceu uma coisa muito engraçada. Um dia fui comprar uma garrafa de champanhe em uma loja próxima da minha casa. No dia anterior tinha visto um monte de garrafas e levantei com vontade de beber uma. Fui até lá e pedi champanhe. A mulher que atendia me disse que haviam acabado. "Como é possível?", perguntei. E ela me respondeu: "Você acha que é o único cliente fino que temos no bairro?". Fui para casa com o rabo entre as pernas. Foi uma maravilha.
Pergunta - Mudou muito desde a Lisboa dos anos 60 para a atual. A cidade está perdendo sua alma, seu espírito?
Pires -
Creio que sim. Há uma diferença fundamental. Aquela cidade era uma cidade fechada. Durante 40 anos foi uma cidade vigiada, uma cidade administrada por militares. O militar só é competente se golpeia pessoas indefesas. Hoje a cidade se abre cada vez mais. Agora atravessamos uma etapa de grande liberdade criativa.
Tabucchi - Eu acho que Lisboa se complicou muito. É uma cidade que triplica todos os dias os habitantes do centro urbano e que não tem capacidade para tanto. Todo mundo vem trabalhar aqui. A velha Lisboa continua igual, mas mudou a sociologia e a antropologia da região.
Pires - Não estou de acordo com Tabucchi. É verdade que todos os dias entram na cidade o mesmo número de pessoas que nela habitam -ou mais- e isto desorienta tudo. Mas é algo que já acontecia antes. Esta cidade é profundamente tenebrosa, está sempre em obras. A corrupção econômica fez coisas terríveis. Durante a ditadura, a corrupção foi manipulada pelos militares, mas agora a corrupção vem dos urbanistas. É uma corrupção de incompetentes. Hoje a burocracia existente não sabe resolver os grandes problemas de Lisboa. É uma cidade de uma pouca vergonha miserável, de uma incompetência total. Estão remendando a cidade todos os dias. Não há nem projeto urbanístico.
Tabucchi - Os urbanistas deveriam transferir todos os ministérios para fora da cidade. Os funcionários bloqueiam diariamente Lisboa e essa seria uma solução para os congestionamentos. Por outro lado, Lisboa tem algo que eu adoro, os jardins. É uma cidade que ainda mantém jardins extremamente agradáveis, onde ainda há uma vida tolerável, humana e civilizada. No resto das cidades européias, os jardins estão desaparecendo. Felizmente, Lisboa mantém esses refúgios. Com relação ao que Pires dizia sobre a corrupção, eu gostaria de dizer que ela também acontece em outras cidades, como em Florença (Itália). Mas pelo menos aqui não tapam o mesmo buraco três vezes durante a época de inverno.
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Tradução Claudia Rossi


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