São Paulo, sexta-feira, 21 de outubro de 2005

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TIM FESTIVAL

Tradicional sambista se apresenta em SP e no Rio em evento musical que privilegia novidades pop e eletrônicas

Strokes, M.I.A., Arcade Fire e... Dona Ivone

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Antenado com as novidades pop-eletrônicas internacionais e sem um fio que faça uma conexão consistente com as tradições da música negra, o Tim Festival tem no show de Dona Ivone Lara um elemento estranho. Aos 84 anos, a maior sambista do país funciona como um signo de atemporalidade em um evento que parece apostar cada vez mais no efêmero e no passageiro e que traz atrações como The Strokes, M.I.A., Elvis Costello e Arcade Fire.
"Eu achei estranho me chamarem, mas gostei demais. Gosto muito da garotada, desse público novo que vai aos meus shows", afirma Dona Ivone, entoando nas entrelinhas os famosos versos de sua "Alguém me Avisou": "Foram me chamar/ Eu estou aqui, o que é que há?".
Ela canta hoje em São Paulo e domingo no Rio, nos palcos do Tim Club. Estará acompanhada de um time de dez feras, tendo à frente o pianista Leandro Braga, que lançou há três anos o CD instrumental "A Primeira Dama", dedicado a Dona Ivone.
"Ela tem a mesma qualidade de Tom Jobim. Não é caô [mentira], acho isso mesmo", afirma Braga, que não considera o autodidatismo da sambista mérito ou demérito. "Se ela tivesse estudado, teria algumas características diferentes, mas a qualidade estaria lá, intensa, essencial", diz.
"Intuitiva" é como Dona Ivone se classifica. O pai, mecânico de bicicletas, era violonista diletante e integrante do Bloco dos Africanos; a mãe, pastora do rancho Flor do Abacate. Ambos morreram quando Yvonne -assim está em sua certidão de nascimento- tinha seis anos.
Foi criada por parentes como o tio Dionísio Bento da Silva, violonista que só admitia que tocassem choro em sua casa. Ensinou à sobrinha as posições no cavaquinho, e o resto ela aprendeu vendo, ouvindo e convivendo com gente que faria história no Império Serrano, como seu primo Mestre Fuleiro, Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola.
"Não tive dificuldade para fazer samba porque esse pessoal vivia na minha casa e minha família era toda de música. Mas tive a honra de ser a primeira mulher a compor um samba-enredo", conta ela, referindo-se ao clássico "Cinco Bailes da História do Rio", parceria com Silas e Bacalhau que fez do Império vice-campeão no desfile de 1965.
Há três anos, ela não desfila na escola porque a diretoria só quer colocá-la em carros alegóricos. "Eu me garanto para ir no chão. Em 2002, aceitei porque era uma homenagem ao Ariano Suassuna. No meio do desfile, já tinha deixado o Suassuna para lá e estava dançando com as baianas."
Dona Ivone não usa o cavaquinho para compor. Cria suas melodias com a voz, com um senso musical muito peculiar. Sua maneira de cantar e contracantar -são famosos seus contracantos, apreciáveis em discos de Paulinho da Viola e outros- evoca histórias, tradições e sentimentos quase intraduzíveis.
"Lara, o seu laraiá é lindo/ Rara ao bailar sorrindo/ São canções de quem tanto, tantos/ Corações retém com o seu canto", exaltou Luiz Carlos da Vila (em parceria com Nelson Sargento) na homenagem "Rara". "Ivone Lara ra ra ra ra ra ra/ Tudo se aclara sob a luz do teu luar/ Lavando a nossa alma/ Com a mais fina inspiração/ Meu samba te pega na palma/ E beija tua mão", reverenciou Nei Lopes (com Cláudio Jorge) em "Senhora da Canção", que o coro cantará no show do Tim Festival.
Dona Ivone desfiará seu repertório de maravilhas, como "Alvorecer", "Aprender a Sofrer", "Nasci para Sonhar", "Tendência", "Candeeiro da Vovó", "Acreditar", "Mas Quem Disse que Eu te Esqueço", "Sonho Meu" e "Sorriso Negro". Na maioria, parcerias com Délcio Carvalho, mas também há Jorge Aragão e Hermínio Bello de Carvalho.
É um conjunto de obras que ela pôde extravasar (em discos e shows) a partir de 1977, quando se aposentou como enfermeira e assistente social de instituições como o Centro Psiquiátrico Pedro 2º, de Nise da Silveira, e a Colônia Juliano Moreira.
"Eu adorava fazer festas com os pacientes. Dançava com eles, cantava sambas. Nunca perdi o prazer de cantar", diz, que, no entanto, não pretende seguir o caminho da tia Tereza, que morreu com 115 anos, e da avó, a famosa Mãe Sabina, que criou 19 crianças (filhos seus e de outras que seu marido espalhava), dezenas de netos e também morreu centenária.
"Não quero dar trabalho. Enquanto estiver assim, com a cabeça boa e sabendo contar dinheiro, tudo bem. Senão, prefiro descansar", anuncia ela, mais lúcida do que nunca.


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