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Livro reúne cartas da escritora e lança luz sobre a sua personalidade "estrangeira"
Clarice manda lembranças
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Clarice Lispector nasceu na
Ucrânia, foi criada no Recife, adotou o Rio e, logo depois de casar
com um diplomata, jovenzinha,
viveu longos anos mundo afora.
Mas não foi nesse "transetê" pelo
globo que a escritora brasileira se
mostrou uma forasteira.
Clarice Lispector foi "uma estrangeira na terra", como a classificou o escritor Antonio Callado,
na personalidade e na literatura.
Na próxima segunda-feira, um
volume de pouco mais de 300 páginas traz às livrarias uma colaboração de peso na aproximação
dessa distante Lispector de seu fiel
corpo de leitores.
No mês em que se completam
25 anos da morte da autora de
"Perto do Coração Selvagem", a
editora Rocco lança o livro "Correspondências", com 129 cartas
recebidas ou enviadas pela escritora. Realizado pela biógrafa clariceana Teresa Montero, o trabalho reúne missivas que abrangem
toda a carreira da autora.
Organizado de modo cronológico, o volume começa com uma
madura carta ao escritor Lúcio
Cardoso, na qual a rapariga de 21
anos incompletos mostra ao já experiente autor de "Crônica da Casa Assassinada" a "vontade de
provar" que é "+ do que uma mulher", e termina com um singelo
bilhete da amiga Lygia Fagundes
Telles, dias antes da morte da autora, em 77, com 57 anos.
Em sua maioria inéditas, com
exceção de algumas já publicadas
em "Cartas Perto do Coração"
(que reúne correspondência com
Fernando Sabino) e em "Esboço
de um Possível Retrato" (da amiga da autora Olga Borelli, morta
há um mês), as missivas fornecem
importantes peças ao quebra-cabeças Lispector.
"Ela se vivia de forma tão fragmentada que parece que todos
seus escritos se interpenetravam.
Suas cartas são exemplos de como
ela podia viver processos que depois ela vai ficcionalizar", diz a
professora de literatura da Universidade de São Paulo Yudith
Rosenbaum, autora de livros como "Metamorfoses do Mal: uma
Leitura de Clarice Lispector" e de
"Folha Explica Clarice Lispector".
Mas, por mais que esse "exercício de elaboração de vivências"
que eram as cartas da escritora
ajudem a acompanhá-la, a professora acredita que não tiram da
personalidade clariceana seu caráter eterno de "lacunar".
A também professora da USP
Nádia Battella Gotlib fala no mesmo diapasão. Mais do que ajudar
a entendê-la, a correspondência
de Lispector ajuda a "percebê-la".
"Cartas a parentes e amigos flagradas na conversa do dia a dia
deixam que o leitor perceba Clarice na sua intimidade povoada
tanto por um despojamento emocionado e simples quanto, por vezes, por pitadas de indagações
mais profundas e críticas."
Autora de uma biografia da escritora ("Clarice: uma Vida que se
Conta") e de um livro de ensaios
sobre correspondências ("Prezado Senhor, Prezada Senhora",
com Walnice Nogueira Galvão),
Gotlib diz que "cartas de escritores algumas vezes não ajudam nada. No caso de Clarice, acrescentam muito".
A pesquisadora se diz fã, em
particular, do conjunto de cartas
que a autora trocou com os "mineiros do Rio", como chama Sabino, Rubem Braga, Paulo Mendes
Campos e Otto Lara Resende.
"Correspondências" traz apenas mensagens trocadas com Rubem Braga e com Sabino, um dos
mais frequentes companheiros de
envelope de Lispector.
Dos outros pouco mais de 20 interlocutores presentes no trabalho (aí incluída a santíssima trindade poética brasileira: Manuel
Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade e João Cabral de Melo
Neto), se destacam pela frequência os intercâmbios com seis missivistas. Lúcio Cardoso, primeiro
"mentor literário da autora", divide espaço nesse ranking com parentes (como a irmã da autora Tânia Kaufmann e o filho Paulo
Gurgel Valente), com amigas (especialmente Mafalda Verissimo e
Bluma Wainer) e com uma garota
então com nove anos.
São para a menina Andréa Azulay, que era filha do psicanalista
da escritora, algumas das mensagens prediletas da organizadora
do volume.
"São lições comoventes sobre como escrever", diz Montero.
A maior parte das cartas compiladas no livro vem da mesma fonte. Estavam guardadas no arquivo
Museu de Literatura Brasileira da
Fundação Casa de Rui Barbosa,
no Rio. É de outro local -o Arquivo Nacional-, porém, que
vêm duas das correspondências
mais curiosas do volume.
Em 1942, ainda "inédita", Clarice Lispector escreveu duas vezes
ao presidente Getúlio Vargas. Tema: registrada como ucraniana,
queria adiantar o processo de naturalização para brasileira.
Personalidade forte, ela conseguiu o que quis. Mas a julgar por
falas como as de Antonio Callado
-e por suas cartas- a brasileira
Clarice Lispector continuou, para
sempre, estrangeira.
CORRESPONDÊNCIAS. De: Clarice
Lispector. Organização: Teresa Montero.
Editora: Rocco. Quanto: preço não
definido (330 págs.).
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