São Paulo, quinta-feira, 21 de novembro de 2002

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Livro reúne cartas da escritora e lança luz sobre a sua personalidade "estrangeira"

Clarice manda lembranças

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, foi criada no Recife, adotou o Rio e, logo depois de casar com um diplomata, jovenzinha, viveu longos anos mundo afora. Mas não foi nesse "transetê" pelo globo que a escritora brasileira se mostrou uma forasteira.
Clarice Lispector foi "uma estrangeira na terra", como a classificou o escritor Antonio Callado, na personalidade e na literatura.
Na próxima segunda-feira, um volume de pouco mais de 300 páginas traz às livrarias uma colaboração de peso na aproximação dessa distante Lispector de seu fiel corpo de leitores.
No mês em que se completam 25 anos da morte da autora de "Perto do Coração Selvagem", a editora Rocco lança o livro "Correspondências", com 129 cartas recebidas ou enviadas pela escritora. Realizado pela biógrafa clariceana Teresa Montero, o trabalho reúne missivas que abrangem toda a carreira da autora.
Organizado de modo cronológico, o volume começa com uma madura carta ao escritor Lúcio Cardoso, na qual a rapariga de 21 anos incompletos mostra ao já experiente autor de "Crônica da Casa Assassinada" a "vontade de provar" que é "+ do que uma mulher", e termina com um singelo bilhete da amiga Lygia Fagundes Telles, dias antes da morte da autora, em 77, com 57 anos.
Em sua maioria inéditas, com exceção de algumas já publicadas em "Cartas Perto do Coração" (que reúne correspondência com Fernando Sabino) e em "Esboço de um Possível Retrato" (da amiga da autora Olga Borelli, morta há um mês), as missivas fornecem importantes peças ao quebra-cabeças Lispector.
"Ela se vivia de forma tão fragmentada que parece que todos seus escritos se interpenetravam. Suas cartas são exemplos de como ela podia viver processos que depois ela vai ficcionalizar", diz a professora de literatura da Universidade de São Paulo Yudith Rosenbaum, autora de livros como "Metamorfoses do Mal: uma Leitura de Clarice Lispector" e de "Folha Explica Clarice Lispector".
Mas, por mais que esse "exercício de elaboração de vivências" que eram as cartas da escritora ajudem a acompanhá-la, a professora acredita que não tiram da personalidade clariceana seu caráter eterno de "lacunar".
A também professora da USP Nádia Battella Gotlib fala no mesmo diapasão. Mais do que ajudar a entendê-la, a correspondência de Lispector ajuda a "percebê-la". "Cartas a parentes e amigos flagradas na conversa do dia a dia deixam que o leitor perceba Clarice na sua intimidade povoada tanto por um despojamento emocionado e simples quanto, por vezes, por pitadas de indagações mais profundas e críticas."
Autora de uma biografia da escritora ("Clarice: uma Vida que se Conta") e de um livro de ensaios sobre correspondências ("Prezado Senhor, Prezada Senhora", com Walnice Nogueira Galvão), Gotlib diz que "cartas de escritores algumas vezes não ajudam nada. No caso de Clarice, acrescentam muito".
A pesquisadora se diz fã, em particular, do conjunto de cartas que a autora trocou com os "mineiros do Rio", como chama Sabino, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende.
"Correspondências" traz apenas mensagens trocadas com Rubem Braga e com Sabino, um dos mais frequentes companheiros de envelope de Lispector.
Dos outros pouco mais de 20 interlocutores presentes no trabalho (aí incluída a santíssima trindade poética brasileira: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto), se destacam pela frequência os intercâmbios com seis missivistas. Lúcio Cardoso, primeiro "mentor literário da autora", divide espaço nesse ranking com parentes (como a irmã da autora Tânia Kaufmann e o filho Paulo Gurgel Valente), com amigas (especialmente Mafalda Verissimo e Bluma Wainer) e com uma garota então com nove anos.
São para a menina Andréa Azulay, que era filha do psicanalista da escritora, algumas das mensagens prediletas da organizadora do volume. "São lições comoventes sobre como escrever", diz Montero.
A maior parte das cartas compiladas no livro vem da mesma fonte. Estavam guardadas no arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio. É de outro local -o Arquivo Nacional-, porém, que vêm duas das correspondências mais curiosas do volume.
Em 1942, ainda "inédita", Clarice Lispector escreveu duas vezes ao presidente Getúlio Vargas. Tema: registrada como ucraniana, queria adiantar o processo de naturalização para brasileira.
Personalidade forte, ela conseguiu o que quis. Mas a julgar por falas como as de Antonio Callado -e por suas cartas- a brasileira Clarice Lispector continuou, para sempre, estrangeira.


CORRESPONDÊNCIAS. De: Clarice Lispector. Organização: Teresa Montero. Editora: Rocco. Quanto: preço não definido (330 págs.).


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