São Paulo, quinta-feira, 21 de novembro de 2002

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GASTRONOMIA

O chef maldito passou por aqui

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Anthony Bourdain passou por aqui. Gosto dele, gostei desde o artigo na "New Yorker" que resultou no "Cozinha Confidencial". Acho seu estilo atraente, másculo, rombudo, meio Rambo, aquele amor descarado e desajeitado pela cozinha. Aprecia mais o ato de cozinhar, o esforço físico da coisa, do que a elaboração de pratos complicados.
E, apesar de todo esse machismo posado, lá no fundo ainda está o menininho de calças curtas que um dia provou uma ostra e por causa disso virou cozinheiro. Tem esse lado frágil e até cândido, quando confessa seu respeito por grandes mestres como Gordon Ramsay, Thomas Keller (The French Laundry) e o inglês Fergus Henderson (St. John's), confessando não ser tão bom quanto gostaria e se derretendo em frente ao basco Arzak.
Bourdain está de novo na estrada, na esteira do sucesso inesperado do primeiro livro, traduzido em toda parte. Veio ao Brasil com o programa "A Cook's Tour", série filmada para a rede de cabo americana Food Network em que sai pelo mundo procurando a refeição perfeita. O que já deu outro livro, a ser publicado no ano que vem em português.
Mas, como ia falando, sua passagem aqui foi rápida, tive que entrevistá-lo por telefone. A agenda dele é absurda, comer aqui e ali, no Rio e em Salvador, filmar, subir e descer morros, atrás daqueles lugares escondidos e intocados pelos turistas (existirão?) e daquelas coisas raras que ninguém comeu (ninguém?).
Priiiiiim!!!!!! Atendeu, voz de acordado, me identifiquei. Eu estava com todas as perguntas prontas, a vida e os livros dele de cor, como pode sair uma entrevista boa se sei mais do entrevistado que ele? Fomos aos trambolhões, sem identificar o culpado pela falta de comunicação verdadeira.
Ele tem senso de humor, ri de gracinhas, tem voz forte, bonita, mas a repórter por um dia sentiu mil coisas por trás, que, claro, podem ser todas inventadas. Cumpríamos um rito, ele respondia, mas se guardava, dentro do papel que lhe inventaram ou que ele inventou para si mesmo e do qual não pode escorregar. Ainda lá no fundo, eu, comovida, sentia o menino da ostra.
Só se animou de verdade quando falei que o considerava mais um escritor do que cozinheiro, protestou, não, não, era mais cozinheiro, escrever para ele é a coisa mais fácil do mundo enquanto cozinhar é danado de complicado. Acostumada com o linguajar dos livros, em que usa "fuck" como vírgula, me surpreendi ao percebê-lo respeitoso. Com certeza lhe contaram que a entrevistadora era uma velha Marcella Hazan e se comportou à altura. Fuck!!!
Um pouco mais de Bourdain:
 

LIVROS - "Os meus prediletos são "The French Laundry Cookbook" (livro do restaurante californiano homônimo), os de George Orwell e "The Kitchen Hotel Splendide", de Ludwig Bemelmans. Também gosto do Nicholas Freeling". Estes dois últimos são livros juvenis, da vida de um hotel, outro de crime e aventuras, que, junto ao Orwell, confirmam a imagem de aventureiro romântico que ele cultiva. "Não sou apaixonado por livros de comida, prefiro livros que falem da vida, do lugar, da experiência." (Sei, mas lá no fundo me veio uma suspeita de que é muito narcisista e não queria falar em escritores do momento, afinal, o livro que vai ser lançado é o seu.)

SOBRE AS DETALHADAS DESCRIÇÕES DE MORTE DE ANIMAIS QUE ESCREVE - "Quero chamar a atenção, até assustar o leitor americano, porque no meu país as pessoas acham que a galinha já vem da natureza frita e embrulhada em plástico e que é só descascá-la e comer [risos]. Penso que a proximidade e a intimidade com os animais, inclusive com a morte deles, fazem a comida bem melhor".

SOBRE AS VIAGENS - "Algumas vezes estudo os lugares, mas, em geral, prefiro me surpreender, fazer do desconhecimento e da ignorância um instrumento de surpresa. Gosto de enfrentar preconceitos, gosto de escandalizar, de me espantar e com isso espantar os telespectadores e os leitores. Não me incomodo muito se a comida é fresca ou não, me vejo com frequência abraçado à privada, o chão frio dos ladrilhos gelados ajudando a sobreviver a um enjôo colossal... Isto é que é a vida real".

RIO DE JANEIRO - "Estou há uma semana aqui, e gostando. Fui a uma favela e a uma casa de família e ao bairro de Santa Teresa, comi feijoada. Comi... [falou de uma coisa que eu não entendi de jeito nenhum, pronúncia brutal. Depois de pedir para repetir três vezes, deixei para lá, seria deseducado, mas soava como "papagaio". Juro!]".

SEUS RESTAURANTES PREFERIDOS EM NOVA YORK - [Depois de pensar muito] "Le Bernardin e Sushi Yassuda".

ÚLTIMA REFEIÇÃO, ANTES DA CADEIRA ELÉTRICA - "Comeria ossobuco só com sal e uma torrada ao lado". (No novo livro, ele chama o tutano de "manteiga de Deus".)

ARMAS - Como parece ter uma fascinação por armas, perguntei se estava armado nesta viagem. Surpreendeu-se e quase respondeu a verdade, riu e gaguejou antes de dizer: "Ora, moro em Nova York". Achei que estava escondendo o leite. Obrigada, e até o próximo livro.

E-mail: ninahort@uol.com.br

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