São Paulo, sexta-feira, 21 de dezembro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

A controvertida história do bandeirinha e do seu impedimento

Talvez não seja verdade. Sinceramente, nunca me dei ao trabalho de investigar se essa placa existe ou existiu mesmo no aeroporto de Buenos Aires. Mas a tradição garante que sim, que em algum canto daquele aeroporto existe uma placa avisando que o cidadão Bernardo Khull está proibido de pisar em solo argentino. Estaria assinada pelo presidente da República, pelo presidente do Congresso, pelo presidente do Supremo Tribunal e pelo comandante-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas daquele país.
Quem foi Bernardo Khull? Que fez ele para merecer o repúdio geral da chamada nação amiga? Eu o conheci, mas não posso jurar que a façanha pela qual mereceu tamanho repúdio seja verdadeira. Era um empresário esportivo que promovia lutas de catch e de boxe. Chegou a trazer Joe Louis, então campeão mundial, para uma luta aqui no Rio.
Tinha os olhos imensamente azuis, mas era corcunda, o que não o impediu de vencer na vida e na profissão. Foi bandeirinha de futebol quando era mais moço e deve a essa profissão o caso em que comprou toda a cólera da nação portenha contra si.
Numa data qualquer dos anos 30, ele atuou como bandeirinha num jogo entre Argentina e Uruguai, final de um torneio do Sul-Americano. O Brasil estava bem classificado, mas precisava que o Uruguai vencesse ou empatasse com a Argentina, para ir à final. Caso contrário, o campeonato daquele nefasto ano ficaria com os argentinos.
O juiz era peruano e os bandeirinhas eram um colombiano e ele, que, apesar do nome internacional, era brasileiro de Aldeia Campista, no Rio de Janeiro.
O Uruguai aguentou firme os dois tempos, a partida ia para o seu término, 0 a 0 no marcador, o Brasil ficaria classificado. No último minuto, um tal de Mendez, centroavante do Boca Juniors e estrela da seleção, um sujeito de pernas brancas e cabeludas, apanha a bola no meio do campo, dribla um e outro, invade a área e marca o gol que daria o campeonato à Argentina.
O estádio se levanta, comemorando a vitória. Os locutores de rádio se esganiçam: Argentina campeã! Argentina campeã! Nisso, um silêncio lúgubre toma conta do estádio. Ninguém havia reparado, mas um dos bandeirinhas estava em posição de sentido, a bandeira levantada, acusando um impedimento de Mendez. Pressionado pelos jogadores uruguaios, o juiz peruano atravessa o campo em passos solenes e consulta o bandeirinha. Atônita, a multidão faz um silêncio aterrador.
O juiz ouve o bandeirinha, anula o gol e manda cobrar o impedimento. Estupor nacional, pasmo em toda a nação argentina, estupor e pasmo tão grandes que em campo ninguém reage. O lance já estava esquecido, Mendez pegara a bola no meio do campo, driblara dois ou três adversários que tinha pela frente, como poderia estar impedido?
Mas Bernardo Khull ali estava, hierático como um soldado em defesa de uma cidadela, como a estátua da Liberdade no porto de Nova York, denunciando o impedimento inexistente.
Autoridades diplomáticas tiveram de se empenhar junto à polícia de Buenos Aires para preservar a vida de Bernardo Khull, que foi retirado do estádio por um helicóptero (naquele tempo se dizia ""um autogiro"). Armou-se uma operação de emergência para mandar Bernardo Khull de volta por um roteiro que passava pela Terra do Fogo, pelo Chile, pela Venezuela e pela Colômbia.
Ele deu a volta por todo o continente para conseguir chegar à Aldeia Campista, onde era vizinho de Nelson Rodrigues e de Lúcio Cardoso, que moravam no mesmo bairro da zona norte do Rio. O Tribunal Esportivo Internacional, acionado pela Federação Argentina, cassou Bernardo Khull dos quadros de bandeirinhas; ele ficaria eternamente proibido de pisar em qualquer campo onde se disputassem partidas oficiais.
Não bastando isso e invocando os numes tutelares da nação amiga (San Martin, Alvear, Carlos Gardel, Belgrano etc), as autoridades máximas do país insultado pediram providências enérgicas ao governo brasileiro, exigindo que o bandeirinha Bernardo Khull fosse extraditado e julgado por uma corte internacional em solo argentino.
Tratadistas foram consultados lá e cá, e a extradição foi negada, pois descobriu-se que Bernardo Khull não era brasileiro. Havia nascido na Ucrânia, que naquele tempo pertencia à União Soviética. Nem o Brasil nem a Argentina queriam briga com o "Urso Polar", que havia se unido a Hitler para invadir a Polônia.
O caso ficaria por isso mesmo, mas a placa foi colocada, não apenas no aeroporto, mas do lado argentino da ponte que liga Uruguaiana e Pasos de los Libres. Bernardo Khull podia pisar nas estrelas, nos astros distraído, mas nunca em chão argentino.
Para falar francamente, Bernardo Khull se lixou para a onda de indignação que provocou em todo o continente. Tornou-se empresário de boxe, como dissemos acima, trouxe Joe Louis ao Brasil e um tal de conde Karol Norvina, que lutava catch, mas era tão conde quanto Bernardo era protonotário apostólico do papa.
Na próxima crônica, contarei como, quando, onde e por que Bernardo Khull ficou corcunda na Ucrânia.



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