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CARLOS HEITOR CONY
A controvertida história do bandeirinha e do seu impedimento
Talvez não seja verdade.
Sinceramente, nunca me dei
ao trabalho de investigar se essa
placa existe ou existiu mesmo no
aeroporto de Buenos Aires. Mas a
tradição garante que sim, que em
algum canto daquele aeroporto
existe uma placa avisando que o
cidadão Bernardo Khull está
proibido de pisar em solo argentino. Estaria assinada pelo presidente da República, pelo presidente do Congresso, pelo presidente do Supremo Tribunal e pelo
comandante-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas daquele país.
Quem foi Bernardo Khull? Que
fez ele para merecer o repúdio geral da chamada nação amiga? Eu
o conheci, mas não posso jurar
que a façanha pela qual mereceu
tamanho repúdio seja verdadeira. Era um empresário esportivo
que promovia lutas de catch e de
boxe. Chegou a trazer Joe Louis,
então campeão mundial, para
uma luta aqui no Rio.
Tinha os olhos imensamente
azuis, mas era corcunda, o que
não o impediu de vencer na vida e
na profissão. Foi bandeirinha de
futebol quando era mais moço e
deve a essa profissão o caso em
que comprou toda a cólera da nação portenha contra si.
Numa data qualquer dos anos
30, ele atuou como bandeirinha
num jogo entre Argentina e Uruguai, final de um torneio do Sul-Americano. O Brasil estava bem
classificado, mas precisava que o
Uruguai vencesse ou empatasse
com a Argentina, para ir à final.
Caso contrário, o campeonato
daquele nefasto ano ficaria com
os argentinos.
O juiz era peruano e os bandeirinhas eram um colombiano e ele,
que, apesar do nome internacional, era brasileiro de Aldeia Campista, no Rio de Janeiro.
O Uruguai aguentou firme os
dois tempos, a partida ia para o
seu término, 0 a 0 no marcador, o
Brasil ficaria classificado. No último minuto, um tal de Mendez,
centroavante do Boca Juniors e
estrela da seleção, um sujeito de
pernas brancas e cabeludas, apanha a bola no meio do campo,
dribla um e outro, invade a área e
marca o gol que daria o campeonato à Argentina.
O estádio se levanta, comemorando a vitória. Os locutores de
rádio se esganiçam: Argentina
campeã! Argentina campeã! Nisso, um silêncio lúgubre toma conta do estádio. Ninguém havia reparado, mas um dos bandeirinhas estava em posição de sentido, a bandeira levantada, acusando um impedimento de Mendez. Pressionado pelos jogadores
uruguaios, o juiz peruano atravessa o campo em passos solenes e
consulta o bandeirinha. Atônita,
a multidão faz um silêncio aterrador.
O juiz ouve o bandeirinha, anula o gol e manda cobrar o impedimento. Estupor nacional, pasmo
em toda a nação argentina, estupor e pasmo tão grandes que em
campo ninguém reage. O lance já
estava esquecido, Mendez pegara
a bola no meio do campo, driblara dois ou três adversários que tinha pela frente, como poderia estar impedido?
Mas Bernardo Khull ali estava,
hierático como um soldado em
defesa de uma cidadela, como a
estátua da Liberdade no porto de
Nova York, denunciando o impedimento inexistente.
Autoridades diplomáticas tiveram de se empenhar junto à polícia de Buenos Aires para preservar a vida de Bernardo Khull, que
foi retirado do estádio por um helicóptero (naquele tempo se dizia
""um autogiro"). Armou-se uma
operação de emergência para
mandar Bernardo Khull de volta
por um roteiro que passava pela
Terra do Fogo, pelo Chile, pela
Venezuela e pela Colômbia.
Ele deu a volta por todo o continente para conseguir chegar à Aldeia Campista, onde era vizinho
de Nelson Rodrigues e de Lúcio
Cardoso, que moravam no mesmo bairro da zona norte do Rio.
O Tribunal Esportivo Internacional, acionado pela Federação Argentina, cassou Bernardo Khull
dos quadros de bandeirinhas; ele
ficaria eternamente proibido de
pisar em qualquer campo onde se
disputassem partidas oficiais.
Não bastando isso e invocando
os numes tutelares da nação amiga (San Martin, Alvear, Carlos
Gardel, Belgrano etc), as autoridades máximas do país insultado
pediram providências enérgicas
ao governo brasileiro, exigindo
que o bandeirinha Bernardo
Khull fosse extraditado e julgado
por uma corte internacional em
solo argentino.
Tratadistas foram consultados
lá e cá, e a extradição foi negada,
pois descobriu-se que Bernardo
Khull não era brasileiro. Havia
nascido na Ucrânia, que naquele
tempo pertencia à União Soviética. Nem o Brasil nem a Argentina
queriam briga com o "Urso Polar", que havia se unido a Hitler
para invadir a Polônia.
O caso ficaria por isso mesmo,
mas a placa foi colocada, não
apenas no aeroporto, mas do lado
argentino da ponte que liga Uruguaiana e Pasos de los Libres.
Bernardo Khull podia pisar nas
estrelas, nos astros distraído, mas
nunca em chão argentino.
Para falar francamente, Bernardo Khull se lixou para a onda
de indignação que provocou em
todo o continente. Tornou-se empresário de boxe, como dissemos
acima, trouxe Joe Louis ao Brasil
e um tal de conde Karol Norvina,
que lutava catch, mas era tão
conde quanto Bernardo era protonotário apostólico do papa.
Na próxima crônica, contarei
como, quando, onde e por que
Bernardo Khull ficou corcunda
na Ucrânia.
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