São Paulo, sábado, 21 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS/LANÇAMENTO

AMOR CORRESPONDIDO

Obra reúne 30 anos de correspondência de Caio F.

Cartas do escritor narram amor nos tempos da Aids

DA REPORTAGEM LOCAL

Caio Fernando Abreu assistia "TV Mulher", lia o jornal de classificados "Primeira Mão", sonhava em ter uma livraria especializada em pesos de papel de cristal chamada Virginia Woolf e, melhor, não deixava de contar tudo isso aos amigos.
A fluência e a falta de freios, que o autor exibiu ao longo dos seus 30 anos de escrevinhações, é um dos grandes trunfos da correspondência reunida em "Cartas".
Caio F., como gostava de assinar sua correspondência, em alusão a "Christiane F.", romance popular nos seus populares anos 80, odiava falar ao telefone (como ele mesmo crava em carta ao escritor Charles Kiefer).
Daí vem a prolixidade das correspondências. Chegava a datilografar, suas cartas eram feitas sempre à máquina, mais de 20 laudas.
Os interlocutores reunidos no livro não são muitos. Da fase primeira, se destaca o volume de cartas trocadas com Hilda Hilst, uma espécie de madrinha do escritor iniciante. Também postava aos montes cartas para a médica e terapeuta Vera Antoun, amiga desde os primeiros anos 70.
Do bloco recente, abundam cartas para os amigos Jacqueline Cantore, Luciano Alabarse (que assina o prefácio) e Maria Lídia Magliani.
É a esta amiga, pintora, que o escritor manda uma das primeiras notícias do descobrimento de ser soropositivo. Com a mesma leveza que acompanha o quase todo das 534 páginas de cartas, escreve: "Não se preocupe. Não fique triste. Tudo me parece muito lógico: que outra morte eu poderia ter? É a minha cara! E futilidade sempre foi matéria de salvação: convenhamos que é muito moderno, muito in".
Cinco dias depois dessa carta, em 21 de agosto de 1994, Caio Fernando Abreu tornou pública a sua doença na crônica "Carta para Além dos Muros", no jornal "O Estado de S.Paulo", entrando para o time dos que exibiram sem véu o rosto magro e triste da Aids.
"Coloco o Caio no mesmo plano do Cazuza e do Renato Russo como personalidades poéticas representativas desse fim de século brasileiro", diz Italo Moriconi.
Organizador das cartas, assim como do bem-sucedido volume "Os 100 Melhores Contos do Brasil" (Objetiva), o professor da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) dividiu "Cartas - Caio Fernando de Abreu" em dois blocos. A primeira parte ("Todas as Horas do Fim", citação a Torquato Neto) compila correspondências dos anos 70, 80 e 90. A segunda ("Começo: o Narrador", título de parte de romance de Silviano Santiago) apanha cartas que ele escreveu de 65 aos 70.
O volume só traz correspondência enviada pelo escritor. O que, à leitura de um fragmento de uma das cartas, parece o bastante: "O amor que sinto pelos outros quase sempre é suficiente, não precisa nem ter volta", escreve a Luciano Alabarse.
Mais do que a interlocução com os missivistas, o escritor de virgem, ascendente escorpião e Lua em capricórnio (como gostava de cravar nas cartas) acaba conversando mesmo com sua época e com sua literatura.
No castelo de cartas que saía de sua máquina contava suas primeiras inquietudes literárias, narrava o longo parto de cinco anos de "Onde Andará Dulce Veiga?" ("escrevi cerca de 2.000 laudas, para chegar numas 200"), delineava o que seria seu último livro, "Ovelhas Negras", que acaba de ser reeditado, em versão pocket, pela editora L&PM.
Nessas andanças entre Porto Alegre (que chamava de "gay port") e São Paulo, cidades nas quais o gaúcho de Santiago viveu a maior parte da vida, ele também não deixa de lado o universo político brasileiro.
Com suas cartas segue a esperança da eleição de Tancredo Neves, as turbulências do Plano Cruzado, os lamentos da Era Collor.
No meio disso tudo, porém, resta mesmo uma relação muito intensa com a vida. Como diz em carta aos pais, nos anos 80, "o que sobra é o áspero do gesto, a secura da palavra. Por trás disso, há muito amor. Amor louco -todas as pessoas são loucas, inclusive nós".
(CASSIANO ELEK MACHADO)


CARTAS - CAIO FERNANDO ABREU.
Organização: Italo Moriconi. Editora: Aeroplano (tel. 0/xx/21/2529-6974). Quanto: R$ 48 (534 págs.). Lançamento: amanhã, às 17h. Onde: Livraria do Museu - Museu da República (r. do Catete, 153, Rio de Janeiro, tel. 0/xx/21/2205-0603).



Texto Anterior: Amor correspondido
Próximo Texto: Mônica Bergamo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.