São Paulo, sábado, 22 de janeiro de 2005

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ROMANCE

Em "State of Fear", personagens dão aulas sobre mudança climática

Crichton faz libelo entediante contra aquecimento global

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Depois de faturar milhões com denúncias da "hubris" tecnocientífica em livros de ficção como "Presa" (nanotecnologia) e "Parque Jurássico" (engenharia genética), Michael Crichton parte agora ao ataque contra uma categoria inteira de pesquisadores, os climatologistas. Seu novo livro, "State of Fear" (Estado de Medo), é um longo e tenebroso libelo contra a idéia de aquecimento global. Nada contra embutir uma tese num romance, por certo, mas é preciso um mínimo de arte e sutileza. Ele abriu mão de ambas.
Arte não há nas 603 páginas da obra, apenas um exercício infindável da técnica de manter leitores em suspense com ação e diálogos. Resumo do futuro filme: ambientalistas radicais preparam atos ecoterroristas (da produção de um supericeberg na Antártida à de um tsunami no Pacífico) para convencer a opinião pública de que a mentira da mudança climática é real; mocinhos céticos os combatem e vencem com armas, astúcia e verdades.
Sutileza, tampouco. Crichton não tem culpa pelo mau passo do tsunami, pois o livro saiu três semanas antes do desastre no Índico. Também não seria o caso de cobrar verossimilhança numa obra dessas, mas que os atentados são demais para a paciência do freguês, isso são. O pior vem com as inúmeras interrupções da ação para aulas e mais aulas de personagens sobre as supostas inverdades acerca da mudança climática -com notas de rodapé e tudo.
Para uma ficção, é no mínimo inusitado vir acompanhada de 34 páginas de apêndices, das quais 20 de bibliografia. Segundo o autor, foram três anos de leituras sobre ambiente. Poderia ser criativo e resultou entediante.
Na sua tentativa de ser mais científico que os cientistas-vilões do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudança Climática, órgão da ONU), Crichton escorrega várias vezes. Um exemplo: ao negar que a neve do Kilimanjaro esteja derretendo por causa do aquecimento global, dá duas referências, uma delas na prestigiada revista "Nature"; na realidade, trata-se de uma reportagem para o site www.nature.com/news.
Outro exemplo: o escritor ataca os climatologistas do IPCC dizendo que eles têm uma agenda e que isso enviesa seus trabalhos, propondo como solução exemplar estudos duplo-cego, usados nos testes de novos remédios. Afora o fato de não haver paralelo metodológico possível entre modelagem climatológica e testes clínicos de medicamentos, Crichton foi infeliz na escolha do modelo. É difícil encontrar, hoje, um exemplo mais acabado de enviesamento em pesquisas (após o caso Vioxx).
O mais lamentável é que o livro está cheio de boas tiradas: "Se há uma coisa pior do que um esquerdista de limusine, é um ambientalista de [jato] Gulfstream". São estocadas saborosas e necessárias contra os exageros ridículos facilmente encontráveis entre ambientalistas de verniz, mas que se perdem num oceano de artigos de fé cética (com perdão do oximoro): "A ameaça do aquecimento global é essencialmente inexistente. Mesmo se fosse um fenômeno real, resultaria provavelmente num saldo benéfico para a maior parte do mundo".
Não existe apoio em pesquisas para essa tese de Crichton. A única tese incontestável sobre o novo livro de Crichton é que ele se debruçou longamente sobre a obra polêmica de Bjorn Lomborg, "O Ambientalista Cético", e fez dela uma leitura muito pouco cética.


State of Fear
  
Autor: Michael Crichton
Editora: Harper USA
Quanto: R$ 107 (603 págs.)


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