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JOÃO PEREIRA COUTINHO
A fogueira das vaidades
Parece que Bento é um "reacionário" em matéria científica, e recebê-lo seria receber o anticristo
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POBRE BENTO 16. O homem é
um filósofo e um eminente intelectual europeu. Professor
também. Mas, quando ele põe o pé
numa universidade, o mundo desaba em volta.
Em setembro de 2006, na universidade alemã de Ratisbona, um discurso do Papa sobre as relações entre a fé e a razão incendiou o mundo
islâmico, que não gostou de uma citação erudita sobre as violências de
Maomé (que, como se sabe, foi o primeiro pacifista da história). A cabeça de Ratzinger foi rapidamente exigida numa bandeja.
Na passada semana, a universidade La Sapienza, em Roma, ofereceu
espetáculo similar. Primeiro, convidou Bento para discursar no começo
do ano letivo. Depois, 67 professores
da casa exigiram o cancelamento do
convite. Parece que Bento é um
"reacionário" em matéria científica,
e receber o papa seria receber o anticristo; seria, enfim, uma grotesca
violação da autonomia da
universidade.
Bento 16 preferiu não comparecer. Os fanáticos gritaram vitória.
Alguns, citando Stálin (sem saber
que citavam Stálin, ou, talvez, sabendo), proclamaram que o papa fora obrigado a retirar as suas "divisões". Perfeito.
Com a idade, uma pessoa habitua-se a tudo. À grosseria, à deselegância
e à estupidez da espécie humana.
Como são Paulo, é possível suportar
tolos de cara alegre. Mas a ignorância é difícil de engolir. Sobretudo
quando a ignorância vem de gente
perfeitamente convencida da sua
sabedoria.
Comecemos pela "autonomia universitária", que os 67 professores da
La Sapienza gostaram de evocar.
Mas essa gente saberá mesmo do
que fala? Não, não me refiro ao óbvio: a universidade a que os 67 sábios
pertencem foi, na verdade, fundada
pelo papa Bonifácio 8, em 1303. O
problema é mais vasto e lida com a
própria idéia de "universidade"
-que é, goste-se ou desgoste-se,
uma criação da Igreja Católica no
Ocidente pós-romano.
Verdade que os 67 professores
provêm das ciências exatas e, tal como C.P. Snow denunciava em 1959
num célebre discurso sobre as "duas
culturas" -a científica e a humanista-, persiste ainda um divórcio
analfabeto entre ambas.
Mas tempos houve em que até os
homens da ciência liam história. E,
lendo história, encontrariam uma
Europa que, depois da desagregação
do Império Romano, deveu à ação
concertada do monaquismo europeu o resgate, a preservação e a
transmissão da cultura clássica. A
partir do século 12, de Oxford a Paris, a "universidade" como hoje a conhecemos, com suas divisões de
cursos e graus acadêmicos, acabaria
por emergir.
E emergiu tendo em conta a própria visão deísta do cristianismo,
que na verdade forneceu as bases do
espírito científico. Ao contrário das
culturas animistas da Antiguidade,
onde a natureza é palco de forças
misteriosas e caprichosas que estão
para além do entendimento humano, a idéia de um Deus único e criador pressupõe leis naturais que é necessário descobrir. E descobrir racionalmente.
A universidade medieval, mesmo
com todas as suas limitações, procurou, apesar de tudo, acomodar esse
imperativo "racional". O "quadrivium", por meio do estudo da aritmética, da geometria, da astronomia
e da música, conferia ao cientista
medieval os instrumentos da contemplação do universo. O "trivium",
centrado na gramática, na retórica e
na lógica, permitia a articulação racional dessa mesma contemplação.
Claro que a história da ciência surge marcada por uma tensão permanente entre a "fé" e a "razão". E a
modernidade do século 18 fez-se, em
grande medida, contra a autoridade
dogmática da igreja em certos domínios científicos.
Mas esse processo de "emancipação" não teria sido possível sem a
herança medieval e cristã européia
-o caso típico, e bem freudiano, do
filho que mata o pai. E, naturalmente, o espírito do "iluminismo" fez-se
por debate e confronto, não pela posição cômoda e covarde de evitar
qualquer debate e qualquer confronto. Até para esmagar o infame é
necessário que o infame apareça.
Os 67 sábios da La Sapienza são a
negação do espírito científico e, sem
surpresas, a expressão da mediocridade universitária européia. Mas
são mais: ao condenarem qualquer
posição contrária como herética,
eles assumem o papel inquisitorial
que, pateticamente, acreditam
condenar.
Eis um sinal irônico do barbarismo contemporâneo: saber que as fogueiras santas do passado mudaram
de dono e são agora atiçadas pelos
racionalistas do presente.
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