São Paulo, terça-feira, 22 de janeiro de 2008

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

A fogueira das vaidades


Parece que Bento é um "reacionário" em matéria científica, e recebê-lo seria receber o anticristo

POBRE BENTO 16. O homem é um filósofo e um eminente intelectual europeu. Professor também. Mas, quando ele põe o pé numa universidade, o mundo desaba em volta.
Em setembro de 2006, na universidade alemã de Ratisbona, um discurso do Papa sobre as relações entre a fé e a razão incendiou o mundo islâmico, que não gostou de uma citação erudita sobre as violências de Maomé (que, como se sabe, foi o primeiro pacifista da história). A cabeça de Ratzinger foi rapidamente exigida numa bandeja.
Na passada semana, a universidade La Sapienza, em Roma, ofereceu espetáculo similar. Primeiro, convidou Bento para discursar no começo do ano letivo. Depois, 67 professores da casa exigiram o cancelamento do convite. Parece que Bento é um "reacionário" em matéria científica, e receber o papa seria receber o anticristo; seria, enfim, uma grotesca violação da autonomia da universidade.
Bento 16 preferiu não comparecer. Os fanáticos gritaram vitória. Alguns, citando Stálin (sem saber que citavam Stálin, ou, talvez, sabendo), proclamaram que o papa fora obrigado a retirar as suas "divisões". Perfeito.
Com a idade, uma pessoa habitua-se a tudo. À grosseria, à deselegância e à estupidez da espécie humana. Como são Paulo, é possível suportar tolos de cara alegre. Mas a ignorância é difícil de engolir. Sobretudo quando a ignorância vem de gente perfeitamente convencida da sua sabedoria.
Comecemos pela "autonomia universitária", que os 67 professores da La Sapienza gostaram de evocar. Mas essa gente saberá mesmo do que fala? Não, não me refiro ao óbvio: a universidade a que os 67 sábios pertencem foi, na verdade, fundada pelo papa Bonifácio 8, em 1303. O problema é mais vasto e lida com a própria idéia de "universidade" -que é, goste-se ou desgoste-se, uma criação da Igreja Católica no Ocidente pós-romano.
Verdade que os 67 professores provêm das ciências exatas e, tal como C.P. Snow denunciava em 1959 num célebre discurso sobre as "duas culturas" -a científica e a humanista-, persiste ainda um divórcio analfabeto entre ambas.
Mas tempos houve em que até os homens da ciência liam história. E, lendo história, encontrariam uma Europa que, depois da desagregação do Império Romano, deveu à ação concertada do monaquismo europeu o resgate, a preservação e a transmissão da cultura clássica. A partir do século 12, de Oxford a Paris, a "universidade" como hoje a conhecemos, com suas divisões de cursos e graus acadêmicos, acabaria por emergir.
E emergiu tendo em conta a própria visão deísta do cristianismo, que na verdade forneceu as bases do espírito científico. Ao contrário das culturas animistas da Antiguidade, onde a natureza é palco de forças misteriosas e caprichosas que estão para além do entendimento humano, a idéia de um Deus único e criador pressupõe leis naturais que é necessário descobrir. E descobrir racionalmente.
A universidade medieval, mesmo com todas as suas limitações, procurou, apesar de tudo, acomodar esse imperativo "racional". O "quadrivium", por meio do estudo da aritmética, da geometria, da astronomia e da música, conferia ao cientista medieval os instrumentos da contemplação do universo. O "trivium", centrado na gramática, na retórica e na lógica, permitia a articulação racional dessa mesma contemplação.
Claro que a história da ciência surge marcada por uma tensão permanente entre a "fé" e a "razão". E a modernidade do século 18 fez-se, em grande medida, contra a autoridade dogmática da igreja em certos domínios científicos.
Mas esse processo de "emancipação" não teria sido possível sem a herança medieval e cristã européia -o caso típico, e bem freudiano, do filho que mata o pai. E, naturalmente, o espírito do "iluminismo" fez-se por debate e confronto, não pela posição cômoda e covarde de evitar qualquer debate e qualquer confronto. Até para esmagar o infame é necessário que o infame apareça.
Os 67 sábios da La Sapienza são a negação do espírito científico e, sem surpresas, a expressão da mediocridade universitária européia. Mas são mais: ao condenarem qualquer posição contrária como herética, eles assumem o papel inquisitorial que, pateticamente, acreditam condenar.
Eis um sinal irônico do barbarismo contemporâneo: saber que as fogueiras santas do passado mudaram de dono e são agora atiçadas pelos racionalistas do presente.


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