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Aquele homem de braços abertos
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Foi há tempos, ali pelos anos
50 ou 60, não lembro mais. Tive
aquilo que hoje, em gíria de
jornal, chamam de "retorno".
Na realidade, esse retorno na
maioria das vezes começa com
uma genérica espinafração dos
leitores e termina com a demissão do infeliz. Não havia ainda
a atual "justa causa", mas o
opróbrio que acompanhava a
operação era tal e tamanho
que nem valia a pena reclamar.
No meu caso, o retorno se
concretizou apenas na primeira modalidade. Recebi uma assombrosa quantidade de protestos, chegaram a ameaçar
surras. Os mais moderados
prometeram fazer um ato de
desagravo ao Redentor. Mas só
vim a sair do jornal anos depois, pedindo demissão por
motivos que não vêm ao caso.
Tudo por causa de uma inocente crônica sobre o morro do
Pasmado. Crônica que provocou iras. Cóleras piedosas é certo, mas foram cóleras piedosas
que churrasquearam vários
impenitentes ao longo da Idade Média.
Não, não chegaram a insinuar que eu merecesse ser queimado em praça pública, como
uma Joana d'Arc travestida e
anacrônica. Fiz o que pude para desculpar-me e hoje, passados tantos anos, considero o
episódio um dos equívocos
mais comuns que periodicamente são criados entre jornalistas e leitores.
O motivo foi simples: narrando na primeira pessoa as ditas
e desditas do morro do Pasmado, fiz o próprio comentar: "No
Pão de Açúcar colocaram
aquele bondinho ridículo. No
Corcovado, aviltaram a montanha com aquele homem de
braços abertos". Pois aí está: o
homem de braços abertos.
Para nós, humanos e pecadores, bem sabemos que aquele
homem de braços abertos é o
Verbo que se fez Carne no seio
puríssimo de Maria Virgem,
padecido sob o poder de Pôncio
Pilatos, morto, sepultado e ressuscitado. Encarnação, padecimentos, morte, sepultura e ressurreição -tudo teve um fim
elevado: a redenção do pecado
original. "O felix culpa quae
talem ac tantum meruit habere
redemptorem!" Tradução literal: oh culpa feliz (a de Adão e
Eva) que nos fez merecer tal e
tanto Redentor!
Bom, de minha parte, até o
latim arranho um pouco, o que
de nada me tem valido ao longo da vida, daí que sou dos que
podem dizer, com amplo conhecimento de causa, que gastei o meu latim.
Mas não poderia, em são pensamento, fazer o meu personagem -no caso, o Pasmado-
saber latim. Limitei-me a raciocinar pelo morro -o que
não é tarefa fácil, embora o pareça. Para o morro e, principalmente, para o morro humilde
que é o Pasmado, o Redentor
será sempre um homem de braços abertos.
Se fora outro o morro, o negócio seria diferente. Há bastante
intimidade entre as coisas sagradas e a montanha. Moisés
teve uma audiência particular
com Jeová no alto de uma montanha. Foi lá em cima que os
dois bolaram os mandamentos
que até hoje nos guiam e protegem.
Em outra montanha, o diabo
mostrou a Jesus o mundo inteiro e ofereceu tudo aquilo
-glória, prazeres e poder-
por uma simples genuflexão:
bastava que Jesus se prostrasse
ao chão e adorasse o Pai das
Trevas. Ganharia o mundo,
mas perderia a alma.
Em outra montanha, Jesus
pronunciou seu mais belo e importante sermão. Em outro
monte, orou, suou sangue e foi
beijado por Judas. Finalmente,
houve um outro morro em sua
curta vida, um morro calvo e
triste, cuja silhueta, até hoje,
permanece em nossas retinas,
com suas três cruzes iguais e
dolorosas.
Há ainda a montanha de
Maomé, responsável por um
dos desafios da mente humana,
pois até hoje não se sabe se a
montanha foi a Maomé ou se
Maomé é que foi à montanha.
Não podemos esquecer a
montanha onde Zaratustra encontrou o monge que chorava,
rezava e murmurava. Gosto
muito desse monge e com ele
me identifico, embora não precise de montanha para chorar,
rezar e murmurar. Faço isso
em qualquer lugar.
E há a nossa provinciana
montanha que é Minas Gerais,
que volta e meia cria um caso.
Enfim, nada tenho contra as
montanhas e acredito que elas
nada tenham contra mim.
Mas o morro do Pasmado não
chega a ser montanha. Nenhum Moisés galgou seus caminhos em busca de Deus, nenhum Deus foi tentado em seus
cimos, nenhum Deus foi ali
imolado. Imolado tem sido o
próprio morro: os homens lhe
abriram uma goela embaixo e,
para expulsar os favelados que
ali viviam, botaram fogo em
seus barracos, queimaram sua
pele.
É um morro sem nenhum motivo para gostar dos deuses ou
dos homens. Os deuses não o
protegeram, e os homens -esses devoraram suas entranhas,
mutilaram sua carne.
Por tudo isso, o nosso fotografado Cristo Redentor, visto sob
a perspectiva de um morro humilde a seus pés, será sempre
-sem glória e sem máculas-
um simples homem de braços
abertos, na tentativa de abraçar seres e coisas das quais o
Pasmado -em sua humilde e
destruição- já participa.
Podemos concluir que todos
os morros têm o destino que
merecem. No que são iguais aos
deuses e aos homens.
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