São Paulo, sexta, 22 de janeiro de 1999

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Aquele homem de braços abertos

CARLOS HEITOR CONY

do Conselho Editorial

Foi há tempos, ali pelos anos 50 ou 60, não lembro mais. Tive aquilo que hoje, em gíria de jornal, chamam de "retorno". Na realidade, esse retorno na maioria das vezes começa com uma genérica espinafração dos leitores e termina com a demissão do infeliz. Não havia ainda a atual "justa causa", mas o opróbrio que acompanhava a operação era tal e tamanho que nem valia a pena reclamar.
No meu caso, o retorno se concretizou apenas na primeira modalidade. Recebi uma assombrosa quantidade de protestos, chegaram a ameaçar surras. Os mais moderados prometeram fazer um ato de desagravo ao Redentor. Mas só vim a sair do jornal anos depois, pedindo demissão por motivos que não vêm ao caso.
Tudo por causa de uma inocente crônica sobre o morro do Pasmado. Crônica que provocou iras. Cóleras piedosas é certo, mas foram cóleras piedosas que churrasquearam vários impenitentes ao longo da Idade Média.
Não, não chegaram a insinuar que eu merecesse ser queimado em praça pública, como uma Joana d'Arc travestida e anacrônica. Fiz o que pude para desculpar-me e hoje, passados tantos anos, considero o episódio um dos equívocos mais comuns que periodicamente são criados entre jornalistas e leitores.
O motivo foi simples: narrando na primeira pessoa as ditas e desditas do morro do Pasmado, fiz o próprio comentar: "No Pão de Açúcar colocaram aquele bondinho ridículo. No Corcovado, aviltaram a montanha com aquele homem de braços abertos". Pois aí está: o homem de braços abertos.
Para nós, humanos e pecadores, bem sabemos que aquele homem de braços abertos é o Verbo que se fez Carne no seio puríssimo de Maria Virgem, padecido sob o poder de Pôncio Pilatos, morto, sepultado e ressuscitado. Encarnação, padecimentos, morte, sepultura e ressurreição -tudo teve um fim elevado: a redenção do pecado original. "O felix culpa quae talem ac tantum meruit habere redemptorem!" Tradução literal: oh culpa feliz (a de Adão e Eva) que nos fez merecer tal e tanto Redentor!
Bom, de minha parte, até o latim arranho um pouco, o que de nada me tem valido ao longo da vida, daí que sou dos que podem dizer, com amplo conhecimento de causa, que gastei o meu latim.
Mas não poderia, em são pensamento, fazer o meu personagem -no caso, o Pasmado- saber latim. Limitei-me a raciocinar pelo morro -o que não é tarefa fácil, embora o pareça. Para o morro e, principalmente, para o morro humilde que é o Pasmado, o Redentor será sempre um homem de braços abertos.
Se fora outro o morro, o negócio seria diferente. Há bastante intimidade entre as coisas sagradas e a montanha. Moisés teve uma audiência particular com Jeová no alto de uma montanha. Foi lá em cima que os dois bolaram os mandamentos que até hoje nos guiam e protegem.
Em outra montanha, o diabo mostrou a Jesus o mundo inteiro e ofereceu tudo aquilo -glória, prazeres e poder- por uma simples genuflexão: bastava que Jesus se prostrasse ao chão e adorasse o Pai das Trevas. Ganharia o mundo, mas perderia a alma.
Em outra montanha, Jesus pronunciou seu mais belo e importante sermão. Em outro monte, orou, suou sangue e foi beijado por Judas. Finalmente, houve um outro morro em sua curta vida, um morro calvo e triste, cuja silhueta, até hoje, permanece em nossas retinas, com suas três cruzes iguais e dolorosas.
Há ainda a montanha de Maomé, responsável por um dos desafios da mente humana, pois até hoje não se sabe se a montanha foi a Maomé ou se Maomé é que foi à montanha.
Não podemos esquecer a montanha onde Zaratustra encontrou o monge que chorava, rezava e murmurava. Gosto muito desse monge e com ele me identifico, embora não precise de montanha para chorar, rezar e murmurar. Faço isso em qualquer lugar.
E há a nossa provinciana montanha que é Minas Gerais, que volta e meia cria um caso. Enfim, nada tenho contra as montanhas e acredito que elas nada tenham contra mim.
Mas o morro do Pasmado não chega a ser montanha. Nenhum Moisés galgou seus caminhos em busca de Deus, nenhum Deus foi tentado em seus cimos, nenhum Deus foi ali imolado. Imolado tem sido o próprio morro: os homens lhe abriram uma goela embaixo e, para expulsar os favelados que ali viviam, botaram fogo em seus barracos, queimaram sua pele.
É um morro sem nenhum motivo para gostar dos deuses ou dos homens. Os deuses não o protegeram, e os homens -esses devoraram suas entranhas, mutilaram sua carne.
Por tudo isso, o nosso fotografado Cristo Redentor, visto sob a perspectiva de um morro humilde a seus pés, será sempre -sem glória e sem máculas- um simples homem de braços abertos, na tentativa de abraçar seres e coisas das quais o Pasmado -em sua humilde e destruição- já participa.
Podemos concluir que todos os morros têm o destino que merecem. No que são iguais aos deuses e aos homens.



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