São Paulo, sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

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CARLOS HEITOR CONY

Robbe-Grillet: o funeral do romance

A intenção do autor não deixa de ser corajosa e útil. Mas o inferno está cheio de boas intenções

O TRIÂNGULO Joyce-Kafka-Faulkner (Joyce e Kafka como catetos, Faulkner como hipotenusa) estrangulou o romance. Essa constatação deixaria muita gente sem emprego e função. Mas não se pode negar o esforço e o direito que muitos outros têm e terão de romper o cerco. A essas tentativas não faltariam as experiências de Butor, os truques de Hemingway ou John dos Passos.
O grosso da turma, contudo, descarregaria feio e forte em cada um dos ângulos ou no próprio triângulo em si. Cesare Pavese, Guimarães Rosa, Italo Calvino, Pär Lagerkvist, entre outros, guardadas suas proporções e seus fabulosos méritos, estão nesse caso.
Pertence a Alain Robbe-Grillet, nascido em Brest (1922) e falecido nesta semana, o esforço mais sério e mais desesperado de romper o grilhão. Suas tentativas, sua preocupação pelo anti-romance (cujos resultados "Le Voyeur" anunciaria e "O Ciúme" corporificaria), colocam-no na incômoda situação, e talvez desnecessária, de tentar furar o cerco adotando inocentes laterais.
Na realidade, o seu "roman du regard" não deixa de ser uma capitulação de pés e mãos atados ao sucedâneo mais próximo e inevitável, embora não definitivo: o cinema. O "olhar" que capta e projeta seu mundo ficcional é irmão siamês da objetiva. E o que subsiste de sua obra que não seja projeção de imagens lançadas cruamente é apenas poema -forma literária que, ao contrário do romance, sempre existirá enquanto existir o ser humano.
Um trecho poderá dar a medida de sua objetividade geométrica e cinematográfica. "Na realidade, a quarta fila é constituída por 19 penachos de folhas e dois espaços vazios; e a quinta, por 20 penachos e um espaço -ou seja, de baixo para cima: oito penachos de folhas, um espaço vazio, doze penachos de folhas."
Paralelamente, não podemos nos esquecer de que, por meio de imagens nuas e denunciadas sob a espécie de uma pureza pictorial, há a preocupação de obter, com as sobras, os segundos planos, tudo, enfim, que escapa ao contorno rígido de sua geometria -um poema que pode tornar seu livro um produto mais bem-acabado, mas não uma experiência bem realizada.
Pois o romance-poema está incluído também no triângulo do qual Robbe-Grillet tenta extrair novo ângulo e obter um retângulo, no qual ele próprio seria o quarto canto.
Alain Robbe-Grillet pode ser situado numa trajetória que nem aponta novo caminho, nem se apóia, humilde mas honestamente, na cova já repleta do romance moderno. Sua intenção, válida sob muitos aspectos, não deixa de ser corajosa e útil. Mas o inferno está cheio de boas intenções.
Seu estudo do ciúme -se nos detivermos em sua escassa temática- é tão bom quanto Tolstoi em "Sonata a Kreutzer". A ligeira insinuação erótica (a leitura do livro que compõe a principal traição ou a capacidade de traição) pode lembrar o episódio de Francesca da Rimini e Paolo Malatesta, do canto 5º do "Inferno". Esses pormenores seriam as únicas literatices desculpáveis em um romance que não traz nem aponta nenhuma salvação para o gênero.
No cinema, Robbe-Grillet foi mais feliz, com a ajuda de Resnais e a beleza de Delphine Seyrig, em "O Ano Passado em Marienbad".
Mas sua experiência tem o mérito de reduzir o funeral do romance às suas expressões mais elementares. De um lado, a procura de um focalizador de imagens capaz de equivalência ao olho do artista no momento da criação; de outro, as palavras recriadas em seu universo autônomo, tornadas vivas pela concretização poemática. Tudo para o cinema e o poema. Nada para o romance.
Antes que alguém venha dizer que o romance não está funeral, e sim que o autor do artigo é que está em funeral, é bom esclarecer que o nosso caso pessoal não conta. A constatação é feita em tese. O fabricante de estrelinhas de São João pode considerar a bomba atômica mais explosiva do que a pólvora. Sua constatação será verdadeira e ninguém lhe cobrará a obrigação de abandonar as estrelinhas para fabricar uma bomba atômica. O canceroso, ao afirmar "o câncer é um mal", está dizendo uma aparente verdade. Não caberia então a indagação: então por que o senhor é canceroso?


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