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CARLOS HEITOR CONY
Robbe-Grillet: o funeral do romance
A intenção do autor não deixa de ser corajosa e útil. Mas o inferno está cheio de boas intenções
O TRIÂNGULO Joyce-Kafka-Faulkner (Joyce e Kafka como catetos, Faulkner como
hipotenusa) estrangulou o romance.
Essa constatação deixaria muita
gente sem emprego e função. Mas
não se pode negar o esforço e o direito que muitos outros têm e terão de
romper o cerco. A essas tentativas
não faltariam as experiências de Butor, os truques de Hemingway ou
John dos Passos.
O grosso da turma, contudo, descarregaria feio e forte em cada um
dos ângulos ou no próprio triângulo
em si. Cesare Pavese, Guimarães
Rosa, Italo Calvino, Pär Lagerkvist,
entre outros, guardadas suas proporções e seus fabulosos méritos,
estão nesse caso.
Pertence a Alain Robbe-Grillet,
nascido em Brest (1922) e falecido
nesta semana, o esforço mais sério e
mais desesperado de romper o grilhão. Suas tentativas, sua preocupação pelo anti-romance (cujos resultados "Le Voyeur" anunciaria e "O
Ciúme" corporificaria), colocam-no
na incômoda situação, e talvez desnecessária, de tentar furar o cerco
adotando inocentes laterais.
Na realidade, o seu "roman du regard" não deixa de ser uma capitulação de pés e mãos atados ao sucedâneo mais próximo e inevitável, embora não definitivo: o cinema. O
"olhar" que capta e projeta seu mundo ficcional é irmão siamês da objetiva. E o que subsiste de sua obra que
não seja projeção de imagens lançadas cruamente é apenas poema
-forma literária que, ao contrário
do romance, sempre existirá enquanto existir o ser humano.
Um trecho poderá dar a medida de
sua objetividade geométrica e cinematográfica. "Na realidade, a quarta
fila é constituída por 19 penachos de
folhas e dois espaços vazios; e a
quinta, por 20 penachos e um espaço -ou seja, de baixo para cima: oito
penachos de folhas, um espaço vazio, doze penachos de folhas."
Paralelamente, não podemos nos
esquecer de que, por meio de imagens nuas e denunciadas sob a espécie de uma pureza pictorial, há a
preocupação de obter, com as sobras, os segundos planos, tudo, enfim, que escapa ao contorno rígido
de sua geometria -um poema que
pode tornar seu livro um produto
mais bem-acabado, mas não uma
experiência bem realizada.
Pois o romance-poema está incluído também no triângulo do qual
Robbe-Grillet tenta extrair novo ângulo e obter um retângulo, no qual
ele próprio seria o quarto canto.
Alain Robbe-Grillet pode ser situado numa trajetória que nem
aponta novo caminho, nem se apóia,
humilde mas honestamente, na cova já repleta do romance moderno.
Sua intenção, válida sob muitos aspectos, não deixa de ser corajosa e
útil. Mas o inferno está cheio de boas
intenções.
Seu estudo do ciúme -se nos detivermos em sua escassa temática- é
tão bom quanto Tolstoi em "Sonata
a Kreutzer". A ligeira insinuação
erótica (a leitura do livro que compõe a principal traição ou a capacidade de traição) pode lembrar o episódio de Francesca da Rimini e Paolo Malatesta, do canto 5º do "Inferno". Esses pormenores seriam as
únicas literatices desculpáveis em
um romance que não traz nem
aponta nenhuma salvação para o
gênero.
No cinema, Robbe-Grillet foi mais
feliz, com a ajuda de Resnais e a beleza de Delphine Seyrig, em "O Ano
Passado em Marienbad".
Mas sua experiência tem o mérito
de reduzir o funeral do romance às
suas expressões mais elementares.
De um lado, a procura de um focalizador de imagens capaz de equivalência ao olho do artista no momento da criação; de outro, as palavras
recriadas em seu universo autônomo, tornadas vivas pela concretização poemática. Tudo para o cinema
e o poema. Nada para o romance.
Antes que alguém venha dizer que
o romance não está funeral, e sim
que o autor do artigo é que está em
funeral, é bom esclarecer que o nosso caso pessoal não conta. A constatação é feita em tese. O fabricante de
estrelinhas de São João pode considerar a bomba atômica mais explosiva do que a pólvora. Sua constatação será verdadeira e ninguém lhe
cobrará a obrigação de abandonar as
estrelinhas para fabricar uma bomba atômica. O canceroso, ao afirmar
"o câncer é um mal", está dizendo
uma aparente verdade. Não caberia
então a indagação: então por que o
senhor é canceroso?
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