São Paulo, Segunda-feira, 22 de Fevereiro de 1999
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Keynes revisto numa Quarta-Feira de Cinzas

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Nos momentos livres de Carnaval, foi possível voltar à excelente biografia de Keynes escrita por Robert Skidelsky e editada pela Macmillan. São dois tomos ("Esperanças Traídas" e "O Economista como Salvador") com mais de 700 páginas que mereciam ser traduzidos para o português, sobretudo neste momento em que a atenção nacional se concentra tanto na economia.
Uma biografia desse porte abre um amplo horizonte de trabalho para quem a lê. Keynes era um intelectual sofisticado, casado com uma importante bailarina e frequentador, antes de se tornar uma espécie de estadista, do círculo de Bloomsburry, em que pontificava, entre outros, Virginia Woolf. E foi também um teórico inovador, num momento em que a economia inglesa precisava de novos ares.
Creio que muito se vai falar dele, sobretudo pelo trabalho de admiradores que continuam sua obra, tentando adaptá-la às condições modernas. Não é o meu caso no momento. Carnaval é tempo de pensamentos mais leves, descomprometidos.
O que me fascinou na teoria de Keynes foi sua tentativa de entender o que chamava de amor pelo dinheiro, na sua opinião, um dos grandes problemas do capitalismo. O interessante é que para entender esse estranho amor pelo dinheiro Keynes acabou incorporando a explicação de Freud, para quem esse comportamento é uma consequência da fixação infantil por excrementos.
Nem Freud nem Keynes sobreviveram para testemunhar a etapa do capitalismo em que o dinheiro cruza fronteiras velozmente, desestabiliza economias nacionais e fixa a imagem do especulador como um ator essencial no cassino planetário.
A idéia que se tem da explicação freudiana é de alguém agarrado ao ouro, como uma galinha sentada em cima dos seus ovos. O especulador, na verdade, escapa um pouco desse tipo porque ele arrisca todo o seu dinheiro, permanentemente. E, segundo alguns entendidos, estatisticamente o número de perdedores é maior que o de vencedores.
A magia do dinheiro aparece aqui não como algo que se deva acumular cuidadosamente, atento ao dia de amanhã. Ela emerge como um fascinante jogo que constrói e destrói fortunas na ponta do computador. Às vezes um escândalo como o do funcionário inglês da Barings, em Cingapura, explode de repente. Nick Leeson é um campeão entre os perdedores, pois deixou um rombo de US$ 1,4 bilhão antes de ser preso na Alemanha. Um funcionário japonês da Sumitomo Metais, Yasuo Hamanaka, perdeu US$ 1,8 bilhão (há rumores de que foram US$ 4 bilhões) especulando com o cobre no mercado internacional.
É necessário registrar que os grandes perdedores sempre trabalhavam para alguém. Se tivessem acertado a mão, a estrutura de suas empresas sairia fortalecida. No entanto, falharam e, sem supervisão, conseguiram levar seu equivoco à condição de catástrofe financeira.
Keynes tinha grande respeito pelo trabalho produtivo. Numa negociação com um camponês, começou a achar que o interlocutor era um homem honesto a partir da suas mãos calejadas. E não se enganou.
Na década de 20, ele queria que os capitais ingleses se concentrassem na Inglaterra. Implicitamente, tinha esperanças que os capitalistas fossem, de certa forma, interessados no destino de seu próprio país.
No mundo de hoje, com dinheiro circulando na roleta planetária, os capitalistas nacionais são os primeiros a abandonar um campo que consideram minado. Depois deles, partem os estrangeiros impressionados com os movimentos de quem detêm informações de bastidores.
O resultado final é essa nuvem de dinheiro correndo quase todo o planeta (alguns países foram excluídos) sem que ninguém possa prever com exatidão onde vai pousar.
Freud ficaria impressionado; Keynes talvez aprovasse a idéia de James Tobin de taxar os capitais vagabundos. Mas a verdade é que o amor pelo dinheiro atravessa as épocas, assume novas formas e nossas tentativas de analisá-lo nada conseguem para deter seu rumo.
Amores carnais, místicos, abstratos projetos de salvação da humanidade, nada conseguiu barrar o fascínio do dinheiro. Keynes via nisso tudo um lado positivo, pois para ele a usura e avareza poderiam nos conduzir para bem longe da necessidade, para o reino do progresso material, em que o amor pelo dinheiro se tornaria apenas uma deformação mórbida a ser tratada pelos psicólogos.
Ou esse tempo de superação da necessidade era apenas uma ingênua pretensão das primeiras etapas de sua formulação econômica, ou ele ainda virá para nossos netos.
Freud, ancorado nas profundezas humanas, era mais pessimista.
Isso pode ter influenciado Keynes na sua convicção, nos anos 20, de que o progresso material sempre seria condenável do ponto de vista psicológico e religioso. Era um dos mais intrigantes paradoxos naquela década, e, depois de tantos carnavais, não tenho resposta para ele. Do jeito que as coisas andam nem a ética protestante conseguiria justificar a jogatina que comanda nossas vidas.


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