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Keynes revisto numa Quarta-Feira de Cinzas
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Nos momentos livres de Carnaval, foi possível voltar à excelente biografia de Keynes escrita por Robert Skidelsky e
editada pela Macmillan. São
dois tomos ("Esperanças Traídas" e "O Economista como
Salvador") com mais de 700
páginas que mereciam ser traduzidos para o português, sobretudo neste momento em que
a atenção nacional se concentra tanto na economia.
Uma biografia desse porte
abre um amplo horizonte de
trabalho para quem a lê. Keynes era um intelectual sofisticado, casado com uma importante bailarina e frequentador,
antes de se tornar uma espécie
de estadista, do círculo de
Bloomsburry, em que pontificava, entre outros, Virginia
Woolf. E foi também um teórico inovador, num momento em
que a economia inglesa precisava de novos ares.
Creio que muito se vai falar
dele, sobretudo pelo trabalho
de admiradores que continuam sua obra, tentando
adaptá-la às condições modernas. Não é o meu caso no momento. Carnaval é tempo de
pensamentos mais leves, descomprometidos.
O que me fascinou na teoria
de Keynes foi sua tentativa de
entender o que chamava de
amor pelo dinheiro, na sua opinião, um dos grandes problemas do capitalismo. O interessante é que para entender esse
estranho amor pelo dinheiro
Keynes acabou incorporando a
explicação de Freud, para
quem esse comportamento é
uma consequência da fixação
infantil por excrementos.
Nem Freud nem Keynes sobreviveram para testemunhar
a etapa do capitalismo em que
o dinheiro cruza fronteiras velozmente, desestabiliza economias nacionais e fixa a imagem
do especulador como um ator
essencial no cassino planetário.
A idéia que se tem da explicação freudiana é de alguém
agarrado ao ouro, como uma
galinha sentada em cima dos
seus ovos. O especulador, na
verdade, escapa um pouco desse tipo porque ele arrisca todo o
seu dinheiro, permanentemente. E, segundo alguns entendidos, estatisticamente o número
de perdedores é maior que o de
vencedores.
A magia do dinheiro aparece
aqui não como algo que se deva
acumular cuidadosamente,
atento ao dia de amanhã. Ela
emerge como um fascinante jogo que constrói e destrói fortunas na ponta do computador.
Às vezes um escândalo como o
do funcionário inglês da Barings, em Cingapura, explode
de repente. Nick Leeson é um
campeão entre os perdedores,
pois deixou um rombo de US$
1,4 bilhão antes de ser preso na
Alemanha. Um funcionário japonês da Sumitomo Metais,
Yasuo Hamanaka, perdeu US$
1,8 bilhão (há rumores de que
foram US$ 4 bilhões) especulando com o cobre no mercado
internacional.
É necessário registrar que os
grandes perdedores sempre
trabalhavam para alguém. Se
tivessem acertado a mão, a estrutura de suas empresas sairia
fortalecida. No entanto, falharam e, sem supervisão, conseguiram levar seu equivoco à
condição de catástrofe financeira.
Keynes tinha grande respeito
pelo trabalho produtivo. Numa
negociação com um camponês,
começou a achar que o interlocutor era um homem honesto a
partir da suas mãos calejadas.
E não se enganou.
Na década de 20, ele queria
que os capitais ingleses se concentrassem na Inglaterra. Implicitamente, tinha esperanças
que os capitalistas fossem, de
certa forma, interessados no
destino de seu próprio país.
No mundo de hoje, com dinheiro circulando na roleta
planetária, os capitalistas nacionais são os primeiros a
abandonar um campo que consideram minado. Depois deles,
partem os estrangeiros impressionados com os movimentos
de quem detêm informações de
bastidores.
O resultado final é essa nuvem de dinheiro correndo quase todo o planeta (alguns países
foram excluídos) sem que ninguém possa prever com exatidão onde vai pousar.
Freud ficaria impressionado;
Keynes talvez aprovasse a idéia
de James Tobin de taxar os capitais vagabundos. Mas a verdade é que o amor pelo dinheiro atravessa as épocas, assume
novas formas e nossas tentativas de analisá-lo nada conseguem para deter seu rumo.
Amores carnais, místicos,
abstratos projetos de salvação
da humanidade, nada conseguiu barrar o fascínio do dinheiro. Keynes via nisso tudo
um lado positivo, pois para ele
a usura e avareza poderiam
nos conduzir para bem longe
da necessidade, para o reino do
progresso material, em que o
amor pelo dinheiro se tornaria
apenas uma deformação mórbida a ser tratada pelos psicólogos.
Ou esse tempo de superação
da necessidade era apenas uma
ingênua pretensão das primeiras etapas de sua formulação
econômica, ou ele ainda virá
para nossos netos.
Freud, ancorado nas profundezas humanas, era mais pessimista.
Isso pode ter influenciado
Keynes na sua convicção, nos
anos 20, de que o progresso material sempre seria condenável
do ponto de vista psicológico e
religioso. Era um dos mais intrigantes paradoxos naquela
década, e, depois de tantos carnavais, não tenho resposta para ele. Do jeito que as coisas andam nem a ética protestante
conseguiria justificar a jogatina que comanda nossas vidas.
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