São Paulo, quarta-feira, 22 de março de 2000


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MARCELO COELHO
O eterno retorno do caipira

Vinícius de Moraes referiu-se, num poema famoso, às cores "tão feias" da bandeira brasileira. Um amigo meu, profundo conhecedor de música, pôs-se outro dia a criticar o Hino Nacional: ridículo, operístico, inflado, saltitante...
Sou incapaz de avaliar esteticamente coisas desse gênero. São familiares demais para que as veja com distância crítica. Não existem na forma de "produto" cultural ou de obra artística; existem, simplesmente.
O mesmo talvez se aplique aos quadros mais famosos de Almeida Júnior (1850-1899). Aquele "Caipira Picando Fumo", aquele "Violeiro" encostado na parede de pau-a-pique do casebre, aquela "Nhá Chica", cismando à janela e pitando cachimbo... bem, não posso dizer se são quadros bons ou ruins.
Acabam sendo uma coisa a mais, ou a menos, do que simplesmente quadros: tornaram-se símbolos culturais. O caipira, o violeiro, a casa de taipa, originalmente retratados com "realismo" por Almeida Júnior, adquirem agora a condição do mito. Em vez de revelar-nos a realidade, substituem-na, numa construção mental de que temos dificuldade para nos desvencilhar. Para nós, hoje, o quadro do caipira "é" o caipira, não é mais quadro.
Acaba domingo que vem a exposição "Almeida Júnior - Um Artista Revisitado", na Pinacoteca do Estado. Artistas contemporâneos, como João Câmara, Siron Franco, Carlos Scliar e Leon Ferrari, relêem, revisitam, "repintam" as obras do pintor acadêmico. O resultado é estimulante.
Tome-se o caso mais célebre, o "Caipira Picando Fumo". O mito ali criado -certa auto-suficiência na miséria, um cotidiano rústico banhado em luz de eternidade, o homem do campo não propriamente "abandonado à própria sorte", mas sim "entregue a si mesmo"- passa por reinterpretações curiosíssimas nas mãos de Nelson Screnci, Palmiro Romani e Sebastião Paulino da Silva.
Nelson Screnci pinta 32 retratos de tipos urbanos, na mesma pose do modelo de Almeida Júnior: um frentista segurando a mangueira de gasolina, um jogador de futebol com a bola entre as mãos, um mecânico com a chave inglesa... e a idéia de abandono, de espera e de desvalimento do homem comum surge como que dissolvendo a "nobreza" arquetípica do original.
O procedimento da repetição, da reprodução em série, que Andy Warhol empregara justamente para ironizar mitos da indústria cultural como Marilyn Monroe, é usado aqui para "coletivizar" e "industrializar" o quadro acadêmico. Ao mesmo tempo, reitera-se o sentido mais profundo da pintura de Almeida Júnior: o daquela eternidade imperturbável, daquela resignação solitária que nos acostumamos a ver nas classes baixas -ao estilo do "Pedro Pedreiro" de Chico Buarque.
A mesma imobilidade -do modelo e da situação real- aparece no trabalho de Palmiro Romani, feito a partir de uma fotografia tirada há poucos anos, na qual o autor surpreendeu um "caipira" seguindo exatamente o ritual registrado por Almeida Júnior há mais de um século.
Permanência de um Brasil "atrasado", contra as perspectivas de "modernização" tantas vezes decantadas pelos donos do poder: o tema não poderia ser mais atual, e vale revisitar Almeida Júnior sob esse prisma.
Mas há outro aspecto da obra de Almeida Júnior que também é explorado nessa exposição. Alguns quadros desse autor -"O Importuno", "Amolação Interrompida"- trazem uma instabilidade a esse seu realismo eternizante e mítico. Um desconhecido bate à porta do estúdio: o quadro retrata o pintor atendendo alguém, a modelo retraindo-se num movimento de pudor. Um trabalhador está amolando a lâmina do machado numa pedra; alguém o surpreendeu e ele levanta a mão, como a dizer "já vou".
Quem interrompe o pintor acadêmico, quem é que assusta o caipira? É como se, nos dois casos, fosse a modernização -estética, econômica- do país. Significado semelhante pode ser atribuído ao efeito da luz que rasga as cenas domésticas de outros quadros do pintor, analisado por Aracy Amaral em introdução ao catálogo da mostra.
O susto, a ruptura, a violência do "moderno" não são assim representados nos quadros desse acadêmico, mas estão ali à espreita. Na "releitura" de Antônio Victor do "Violeiro" de Almeida Júnior, na instalação de João Câmara a respeito do "Amolador" ou no machado real de Alex Flemming, é como se a violência, oculta no original, viesse à tona, com a estridência da música "neo-sertaneja" ou com o laconismo do que é pura dominação, sem mitos nem pinturas.
Como não só o oficialismo acadêmico, mas também a arte moderna, passaram a ser vistos com desconfiança, o jogo entre ruptura e permanência, que não é apenas estético, mas também social, se torna passível de uma abordagem variada e paradoxal. Volta-se a Almeida Júnior, não para criticá-lo, mas talvez para admitir que ser "contemporâneo", no Brasil, é nunca ter de fato saído dele.


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