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MARCELO COELHO
O eterno retorno do caipira
Vinícius de Moraes referiu-se,
num poema famoso, às cores "tão
feias" da bandeira brasileira. Um
amigo meu, profundo conhecedor
de música, pôs-se outro dia a criticar o Hino Nacional: ridículo,
operístico, inflado, saltitante...
Sou incapaz de avaliar esteticamente coisas desse gênero. São familiares demais para que as veja
com distância crítica. Não existem na forma de "produto" cultural ou de obra artística; existem,
simplesmente.
O mesmo talvez se aplique aos
quadros mais famosos de Almeida Júnior (1850-1899). Aquele
"Caipira Picando Fumo", aquele
"Violeiro" encostado na parede
de pau-a-pique do casebre, aquela "Nhá Chica", cismando à janela e pitando cachimbo... bem, não
posso dizer se são quadros bons ou
ruins.
Acabam sendo uma coisa a
mais, ou a menos, do que simplesmente quadros: tornaram-se símbolos culturais. O caipira, o violeiro, a casa de taipa, originalmente
retratados com "realismo" por Almeida Júnior, adquirem agora a
condição do mito. Em vez de revelar-nos a realidade, substituem-na, numa construção mental de
que temos dificuldade para nos
desvencilhar. Para nós, hoje, o
quadro do caipira "é" o caipira,
não é mais quadro.
Acaba domingo que vem a exposição "Almeida Júnior - Um Artista Revisitado", na Pinacoteca
do Estado. Artistas contemporâneos, como João Câmara, Siron
Franco, Carlos Scliar e Leon Ferrari, relêem, revisitam, "repintam" as obras do pintor acadêmico. O resultado é estimulante.
Tome-se o caso mais célebre, o
"Caipira Picando Fumo". O mito
ali criado -certa auto-suficiência na miséria, um cotidiano rústico banhado em luz de eternidade, o homem do campo não propriamente "abandonado à própria sorte", mas sim "entregue a si
mesmo"- passa por reinterpretações curiosíssimas nas mãos de
Nelson Screnci, Palmiro Romani e
Sebastião Paulino da Silva.
Nelson Screnci pinta 32 retratos
de tipos urbanos, na mesma pose
do modelo de Almeida Júnior: um
frentista segurando a mangueira
de gasolina, um jogador de futebol com a bola entre as mãos, um
mecânico com a chave inglesa... e
a idéia de abandono, de espera e
de desvalimento do homem comum surge como que dissolvendo
a "nobreza" arquetípica do original.
O procedimento da repetição,
da reprodução em série, que Andy
Warhol empregara justamente
para ironizar mitos da indústria
cultural como Marilyn Monroe, é
usado aqui para "coletivizar" e
"industrializar" o quadro acadêmico. Ao mesmo tempo, reitera-se
o sentido mais profundo da pintura de Almeida Júnior: o daquela
eternidade imperturbável, daquela resignação solitária que nos
acostumamos a ver nas classes
baixas -ao estilo do "Pedro Pedreiro" de Chico Buarque.
A mesma imobilidade -do
modelo e da situação real- aparece no trabalho de Palmiro Romani, feito a partir de uma fotografia tirada há poucos anos, na
qual o autor surpreendeu um
"caipira" seguindo exatamente o
ritual registrado por Almeida Júnior há mais de um século.
Permanência de um Brasil
"atrasado", contra as perspectivas
de "modernização" tantas vezes
decantadas pelos donos do poder:
o tema não poderia ser mais
atual, e vale revisitar Almeida Júnior sob esse prisma.
Mas há outro aspecto da obra
de Almeida Júnior que também é
explorado nessa exposição. Alguns quadros desse autor -"O
Importuno", "Amolação Interrompida"- trazem uma instabilidade a esse seu realismo eternizante e mítico. Um desconhecido
bate à porta do estúdio: o quadro
retrata o pintor atendendo alguém, a modelo retraindo-se num
movimento de pudor. Um trabalhador está amolando a lâmina
do machado numa pedra; alguém
o surpreendeu e ele levanta a
mão, como a dizer "já vou".
Quem interrompe o pintor acadêmico, quem é que assusta o caipira? É como se, nos dois casos,
fosse a modernização -estética,
econômica- do país. Significado
semelhante pode ser atribuído ao
efeito da luz que rasga as cenas
domésticas de outros quadros do
pintor, analisado por Aracy Amaral em introdução ao catálogo da
mostra.
O susto, a ruptura, a violência
do "moderno" não são assim representados nos quadros desse
acadêmico, mas estão ali à espreita. Na "releitura" de Antônio Victor do "Violeiro" de Almeida Júnior, na instalação de João Câmara a respeito do "Amolador" ou
no machado real de Alex Flemming, é como se a violência, oculta no original, viesse à tona, com a
estridência da música "neo-sertaneja" ou com o laconismo do que
é pura dominação, sem mitos
nem pinturas.
Como não só o oficialismo acadêmico, mas também a arte moderna, passaram a ser vistos com
desconfiança, o jogo entre ruptura
e permanência, que não é apenas
estético, mas também social, se
torna passível de uma abordagem
variada e paradoxal. Volta-se a
Almeida Júnior, não para criticá-lo, mas talvez para admitir que
ser "contemporâneo", no Brasil, é
nunca ter de fato saído dele.
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