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São Paulo, sábado, 22 de março de 2003

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CRÍTICA

A documentação do êxtase

EDER CHIODETTO
EDITOR DE FOTOGRAFIA

Fotografar alguém a fim de obter imagens que revelem, de fato, algo da essência da pessoa postada em frente à câmera é a questão fundamental que perpassa a história da fotografia e atormenta todo e qualquer fotógrafo que busca uma expressão para além da superfície das coisas do mundo.
Para conseguir tal feito não há receituário preciso. A diferença entre um retrato visceral e uma imagem banal não reside na técnica, ângulo, lente ou filme utilizados, mas sim na busca de conexões sensoriais, no insondável da relação que se estabelece entre o fotógrafo e o retratado.
É preciso que ambos se capacitem, num determinado espaço de tempo, a abstrair de suas posições diante da câmera. É necessário, mesmo, anular a presença da câmera, assim como o dançarino de butô abstrai a noção de físico para interagir o seu interior com o universo.
O retrato, logo, pode vir a ser um exercício de humanidade, um alargamento da percepção, um ato de entrega, de comunhão entre pessoas que realizam um pacto silencioso de auto-conhecimento. "Kazuo Ohno", o livro, envolto em projeto gráfico precioso de Raul Loureiro, inicia com uma citação certeira do bailarino: "Ao ser fotografado -na relação entre ver e ser visto- surge, pela primeira vez, a sintonia entre o corpo e o espírito".
Ao cabo dessa experiência, a imagem gerada é, obrigatoriamente, de dupla autoria. Não apenas pelo fato de o retratado ter permitido que o fotógrafo mergulhasse para além de sua máscara, mas também porque a face que aparece impressa no papel é quase como um reflexo do fotógrafo.
Ou seja, quando um retrato acontece nas circunstâncias aqui descritas, a imagem final faz emergir tanto o retratado quanto o fotógrafo. Além da função mecânica, o espelho no interior das câmeras fotográficas é um indício claro desse jogo especular.
Os retratos de Kazuo Ohno realizados por Emidio Luisi denotam, mais do que uma sintonia fina, uma comunhão rara efetivada menos pelo racional que pelo emocional. Trata-se da celebração de um encontro.
As imagens em preto-e-branco, mais do que as coloridas impressas à parte, funcionam como a documentação do êxtase da criação, assim explicada por Ohno: "Quero fazer uma dança que não parta da cabeça. Se se dança com a cabeça, a dança se estreita muito. Não se pode criar apenas pensando". O mesmo vale para a fotografia, para as artes em geral e para a vida.


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