|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
A documentação do êxtase
EDER CHIODETTO
EDITOR DE FOTOGRAFIA
Fotografar alguém a fim
de obter imagens que revelem, de fato, algo da essência da
pessoa postada em frente à câmera é a questão fundamental
que perpassa a história da fotografia e atormenta todo e qualquer fotógrafo que busca uma
expressão para além da superfície das coisas do mundo.
Para conseguir tal feito não
há receituário preciso. A diferença entre um retrato visceral
e uma imagem banal não reside na técnica, ângulo, lente ou
filme utilizados, mas sim na
busca de conexões sensoriais,
no insondável da relação que
se estabelece entre o fotógrafo e
o retratado.
É preciso que ambos se capacitem, num determinado espaço de tempo, a abstrair de suas posições diante da câmera. É
necessário, mesmo, anular a
presença da câmera, assim como o dançarino de butô abstrai
a noção de físico para interagir
o seu interior com o universo.
O retrato, logo, pode vir a ser
um exercício de humanidade,
um alargamento da percepção,
um ato de entrega, de comunhão entre pessoas que realizam um pacto silencioso de auto-conhecimento. "Kazuo Ohno", o livro, envolto em projeto
gráfico precioso de Raul Loureiro, inicia com uma citação
certeira do bailarino: "Ao ser
fotografado -na relação entre
ver e ser visto- surge, pela primeira vez, a sintonia entre o
corpo e o espírito".
Ao cabo dessa experiência, a
imagem gerada é, obrigatoriamente, de dupla autoria. Não
apenas pelo fato de o retratado
ter permitido que o fotógrafo
mergulhasse para além de sua
máscara, mas também porque
a face que aparece impressa no
papel é quase como um reflexo
do fotógrafo.
Ou seja, quando um retrato
acontece nas circunstâncias
aqui descritas, a imagem final
faz emergir tanto o retratado
quanto o fotógrafo. Além da
função mecânica, o espelho no
interior das câmeras fotográficas é um indício claro desse jogo especular.
Os retratos de Kazuo Ohno
realizados por Emidio Luisi denotam, mais do que uma sintonia fina, uma comunhão rara efetivada menos pelo racional
que pelo emocional. Trata-se
da celebração de um encontro.
As imagens em preto-e-branco, mais do que as coloridas impressas à parte, funcionam como a documentação do
êxtase da criação, assim explicada por Ohno: "Quero fazer
uma dança que não parta da
cabeça. Se se dança com a cabeça, a dança se estreita muito.
Não se pode criar apenas pensando". O mesmo vale para a
fotografia, para as artes em geral e para a vida.
Texto Anterior: Kazuo Ohno corpo e espírito Próximo Texto: Drauzio Varella: Obesidade inexorável Índice
|