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LITERATURA
Em "Ensaio sobre a Lucidez", que sai agora no Brasil, romancista português "abre os olhos" de seus personagens
Saramago combate "cegueira" com votos em branco
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
No seu universo literário sem
interrogações ou exclamações, José Saramago imprime com freqüência uma mesma pontuação
invisível: não vemos as coisas como elas são. É um arco que vai da
cegueira "explícita" de "Ensaio
sobre a Cegueira" até a visão viciada dos personagens de "A Caverna", que vivem apalpando as
sombras da realidade.
De repente, é como se as criaturas do Nobel de Literatura tivessem por fim seus estalos. No seu
novo romance, "Ensaio sobre a
Lucidez" (seu 11º), que a Companhia das Letras lança nesta semana, o escritor português de 81
anos dá a rara chance de seus personagens de reagirem.
Na sua nova alegoria, Saramago
arquiteta uma população que resolve votar quase toda em branco.
Na capital de um país sem nome
(no qual as pessoas igualmente
nome não têm), 83% dos eleitores
depositam seus votos na urna
sem "xis" algum. Tal qual Gandhi,
pai da resistência pacífica, "derrubam" o poder usando o branco.
A metáfora canina (mais uma)
"uivemos, disse o cão", com suas
quatro e compactas palavras, dá o
tom do livro, como explica o próprio autor, em entrevista por e-mail à Folha (que teve outros trechos publicados no sábado). Saiba a seguir por quê.
Folha - De quem é a frase "Nascemos, e nesse momento é como se tivéssemos firmado um pacto para
toda a vida, mas o dia pode chegar
em que nos perguntemos: Quem
assinou isto por mim"?
Saramago - É minha. Ou não se
pensa que eu seja capaz de produzir uma frase assim? E digo mais:
essa frase resume todo o livro.
Sem esquecer da epígrafe: "Uivemos, disse o cão". Os cães somos
nós. É hora de começar a uivar.
Folha - Por que, em um universo
de sem-nomes, tem nome somente
o cachorro que lambe as lágrimas
dos outros? Por que é "imaterial" o
cenário do romance?
Saramago - O cão viaja nos meus
livros desde "Levantado do
Chão", e o nome Constante que
lhe dei é a homenagem de um humano a um canino. Sobre a "imaterialidade" do cenário, limito-me
a dizer que a impressão sumiria se
as personagens e as ruas tivessem
nome, se tudo pudesse ser colocado em categorias. O leitor compreenderá que o que ali se passa
tem a ver diretamente com ele,
precisamente por parecer não ter
nada a ver com o que quer que seja. Espero ter sido claro.
Folha - Em palestra recente, o sr.
criticou a falta de reflexão da nossa
sociedade, que segue vivendo de
espetáculos, de pães e circos. Qual
a saída da "caverna"?
Saramago - Dizia que estamos a
repetir o que Juvenal escreveu numa de suas sátiras, "Panem et Circenses", isto é, pão e divertimento, pão suficiente para que não
protestemos demasiado e divertimento tanto e tanto que nos salte
pela boca e pelos ouvidos. Provavelmente morreremos de uma indigestão de divertimento... Manipulados, desinformados, enganados, mas bestialmente divertidos.
Folha - O sr. já havia falado em
uma "trilogia involuntária", ao se
referir à relação de "A Caverna"
com os dois livros anteriores. Com
"Ensaio" o sr. chega a uma "tetralogia involuntária"?
Saramago - A trilogia começou
por ser involuntária, isto é, não
pensada antes. Também não se
tornou voluntária, no sentido de
corresponder a algo deliberado e
planificado. As ideias surgem
quando surgem, valem o que valem, e os livros vão aparecendo.
Há um nexo entre eles, evidentemente, mas recuso-me a usar palavras como trilogia, tetralogia ou
pentalogia... A expressão caiu no
gosto dos jornalistas, por isso voltam sempre a referi-la. Deixemo-la, não merece tanto.
Folha - Em livros como "Todos os
Nomes", o sr. já relatou o processo
de uma investigação. Na "segunda
parte" de "Ensaio sobre a Lucidez",
porém, essa busca se aproxima dos
contornos da clássica literatura policial. Como o sr. se sentiu ao fazer
essa incursão ao quase policial?
Saramago - Não se tratou propriamente de uma incursão ao
policial. Sendo a história o que é,
havendo um governo com a sua
autoridade e as suas polícias, havendo uma insurreição cívica, era
natural que o desenvolvimento
fosse por aí. Mas não é policial tudo o que o parece. É policial "Crime e Castigo", de Dostoiévski?
Folha - Como anda seu projeto de
"policial" sobre Alexandre Dumas?
Saramago - Dentro de algumas
semanas regressarei ao projeto.
Folha - Por que o sr. já disse que
"Ensaio..." é o seu testamento?
Saramago - Não penso em morrer nestes próximos dias. Se chamei testamento ao "Ensaio sobre
a Lucidez" foi por nele ter escrito
algumas coisas que nunca havia
dito antes. Quando terminei o
"Ensaio sobre a Cegueira" também me recordo de dizer: "Agora
já posso morrer". Como se vê, não
morri. Ainda.
ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ. Autor: José
Saramago. Editora: Companhia das
Letras. Quanto: R$ 39,50 (325 págs.)
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