São Paulo, terça-feira, 22 de março de 2005

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FERNANDO BONASSI

Muito Deus

Os caminhos dos fundamentalismos religiosos são cheios de desvios escabrosos que podem muito bem ser mal trilhados em atalhos palavrosos por povos cansados da conversa estéril de executivos politicamente pacientes, legislativos historicamente indolentes e da legitimidade das elites forjada nos tribunais competentes da injustiça manjada. Quando qualquer coisa é possível para quem pode é justamente quando os que não podem sofrem o espanto de estar vivos. Há os que se rebelam, mas esses são tão poucos que muitos se tornam escravos de bom grado, se assustam com raios e trovões e adiam suas convicções em nome dos senhores. Porque nos bastidores dos tempos atuais voltamos a ter Deuses demais para explicar todas as coisas evidentes e aceitar caladamente o inexplicável, como um rebanho desolado se reúne em bando por medo do escuro e não tanto pela clareza da solidariedade.
As coisas são mutáveis, mas não ficaram mais complicadas do que foram. Talvez de cada vez mais muitos querem demais agora e para sempre o que só uns poucos tiveram pelos séculos dos séculos até aqui. Acontece com qualquer democracia: quando todos escolhem, a escolha baixa de status e o escolhido ganha em notoriedade e verbas de representação. São os nossos representantes, de qualquer maneira. E de qualquer maneira há mercado para tudo, ainda que todos não possam honrar metade de seu preço. Há muitos que se acham os eleitos, há os que se apresentam como fornecedores de messias. Os empregadores mais espertos ficam quietos, pois não podem imaginar melhor paraíso do que esse, onde os maiores impostos brotam das fontes borbulhantes dos bolsos furados dos menores trabalhadores assalariados. Então todos ficam desolados. Querem acreditar em alguma coisa em meio a tanto descrédito, mas o fato é que estão fartos das incapacidades de si mesmos, preferindo cair de joelhos afogando seus desejos embutidos em desculpas esfarrapadas, do que protestar o azar de quem quer que seja.
Assim, há deuses demais onde parece haver homens e mulheres de menos, de menor coragem ou voragem de entender sua falta de sentido em meio a tudo isso. Não que outro lugar ou jeito fosse pior, mas, se não sabem que é melhor, não se ligam, não se lançam, não se arriscam. Preferem se largar a assumir compromissos com um futuro indiferente. O que falta no presente pode ser assim preenchido por um pacote de embalagem reluzente. Pode ser adorado, celebrado e ungido. É um espetáculo e um rito. Acontece que as festas mascaradas, as novelas requentadas, as votações armadas, as sentenças esperadas e os fogos desse artifício estão ficando chatos, ou simplesmente ricos, esnobes e mal vistos, perdendo audiência e influência aqueles que se dão por essas práticas. O que fazer da falta de criatividade humana? Persistir como bananas no que é sabido não é bom para a libido, mas será para quem estiver preocupado em ficar parado. Não fazer nada é a lição de quem quer persistir. E assim tentam se livrar de antemão das culpas de sua omissão com a graça dos deuses, como se fossem eles assim tão engraçados, verdadeiros, falsos ídolos ou tivessem algo à ver com isso do que fazemos com o que chamamos de moral social.
Há deuses demais na boca dos socialistas cristãos, dos ateus sem opção, dos terroristas de ocasião, dos fascistas de plantão e plantonistas da desinformação acostumados com a mediocridade dos artigos banais e matérias fecais que cultivam nas páginas viradas da nação. Há deuses demais no rádio, no jornal e na televisão! Para uns Deus é pequeno e humilde, para outros, grande demais. Há muitos deuses na boca dos pais, dos filhos e dos espíritos santos. Quando estes deuses serão escarrados, desengasgando as gargantas dos coitados? Como será um deus invocado quando gritado por seus pastores de ovelhas? Há deuses demais nos adesivos dos carros! Há cada vez mais cordeiros sacrificados falando em pecado no congresso, em recato nos tribunais e em vingança para marginais ou policiais. Há deuses demais nos partidos, nos sindicatos, nas manifestações eleitorais.
Deuses podem eventualmente perder para os laboratórios farmacêuticos, mas será apenas enquanto não clonarem solenemente uma nova droga para as mentes inocentes. Há deuses tranqüilizadores onde devia haver traumas transformadores. Há deuses fornidos por empresas nacionais, capitais internacionais e aqueles sustentados por dízimos ocasionais, que os pobres demais não se esquecem de pagar para não ver. Assim, orientam-se mal e loucamente, dando em dobro e sem razão aparente aquilo que tem pra emprestar, afundando-se em dívidas impagáveis e dúvidas lamentáveis. Judas, por exemplo, aceitou 30 dinheiros para rifar o filho de um deles. Depois se arrependeu; porque gostava do rapaz ou porque achava que valia mais, quem poderá responder senão o próprio traidor, "Ele", ou seu filho, que mandam dizer que vão aparecer. São mandões, mas não cumpridores de promessas. Dois testamentos daqueles não bastaram para se fazerem esquecer? São os deuses que devem implorar que lhes perdoem, porque seus proselitismos são materialistas e monoteístas, já que asseguram ter o monopólio sobre o espólio da eternidade. De lá ninguém voltou para dizer a verdade; ou porque é mesmo muito bom, ou simplesmente porque não existe...
Para o bem e para o mal é bom lembrar aqueles que se sentem o máximo, que certos fiéis cansados dessa "re-ligação" em que estão presos podem, no mínimo, dar adeus à essa modalidade de relação. Neste momento, quer os deuses gostem, quer não, quer os homens encontrem algo pior do que o Inferno, estarão livres uns dos outros.


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