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FERNANDO BONASSI
Muito Deus
Os caminhos dos fundamentalismos religiosos são
cheios de desvios escabrosos que
podem muito bem ser mal trilhados em atalhos palavrosos por povos cansados da conversa estéril
de executivos politicamente pacientes, legislativos historicamente indolentes e da legitimidade
das elites forjada nos tribunais
competentes da injustiça manjada. Quando qualquer coisa é possível para quem pode é justamente quando os que não podem sofrem o espanto de estar vivos. Há
os que se rebelam, mas esses são
tão poucos que muitos se tornam
escravos de bom grado, se assustam com raios e trovões e adiam
suas convicções em nome dos senhores. Porque nos bastidores dos
tempos atuais voltamos a ter Deuses demais para explicar todas as
coisas evidentes e aceitar caladamente o inexplicável, como um rebanho desolado se reúne em bando por medo do escuro e não tanto pela clareza da solidariedade.
As coisas são mutáveis, mas não
ficaram mais complicadas do que
foram. Talvez de cada vez mais
muitos querem demais agora e
para sempre o que só uns poucos
tiveram pelos séculos dos séculos
até aqui. Acontece com qualquer
democracia: quando todos escolhem, a escolha baixa de status e o
escolhido ganha em notoriedade e
verbas de representação. São os
nossos representantes, de qualquer maneira. E de qualquer maneira há mercado para tudo, ainda que todos não possam honrar
metade de seu preço. Há muitos
que se acham os eleitos, há os que
se apresentam como fornecedores
de messias. Os empregadores mais
espertos ficam quietos, pois não
podem imaginar melhor paraíso
do que esse, onde os maiores impostos brotam das fontes borbulhantes dos bolsos furados dos menores trabalhadores assalariados.
Então todos ficam desolados.
Querem acreditar em alguma coisa em meio a tanto descrédito,
mas o fato é que estão fartos das
incapacidades de si mesmos, preferindo cair de joelhos afogando
seus desejos embutidos em desculpas esfarrapadas, do que protestar o azar de quem quer que seja.
Assim, há deuses demais onde
parece haver homens e mulheres
de menos, de menor coragem ou
voragem de entender sua falta de
sentido em meio a tudo isso. Não
que outro lugar ou jeito fosse pior,
mas, se não sabem que é melhor,
não se ligam, não se lançam, não
se arriscam. Preferem se largar a
assumir compromissos com um
futuro indiferente. O que falta no
presente pode ser assim preenchido por um pacote de embalagem
reluzente. Pode ser adorado, celebrado e ungido. É um espetáculo e
um rito. Acontece que as festas
mascaradas, as novelas requentadas, as votações armadas, as sentenças esperadas e os fogos desse
artifício estão ficando chatos, ou
simplesmente ricos, esnobes e mal
vistos, perdendo audiência e influência aqueles que se dão por essas práticas. O que fazer da falta
de criatividade humana? Persistir
como bananas no que é sabido
não é bom para a libido, mas será
para quem estiver preocupado em
ficar parado. Não fazer nada é a
lição de quem quer persistir. E assim tentam se livrar de antemão
das culpas de sua omissão com a
graça dos deuses, como se fossem
eles assim tão engraçados, verdadeiros, falsos ídolos ou tivessem
algo à ver com isso do que fazemos com o que chamamos de moral social.
Há deuses demais na boca dos
socialistas cristãos, dos ateus sem
opção, dos terroristas de ocasião,
dos fascistas de plantão e plantonistas da desinformação acostumados com a mediocridade dos
artigos banais e matérias fecais
que cultivam nas páginas viradas
da nação. Há deuses demais no
rádio, no jornal e na televisão! Para uns Deus é pequeno e humilde,
para outros, grande demais. Há
muitos deuses na boca dos pais,
dos filhos e dos espíritos santos.
Quando estes deuses serão escarrados, desengasgando as gargantas dos coitados? Como será um
deus invocado quando gritado
por seus pastores de ovelhas? Há
deuses demais nos adesivos dos
carros! Há cada vez mais cordeiros sacrificados falando em pecado no congresso, em recato nos tribunais e em vingança para marginais ou policiais. Há deuses demais nos partidos, nos sindicatos,
nas manifestações eleitorais.
Deuses podem eventualmente
perder para os laboratórios farmacêuticos, mas será apenas enquanto não clonarem solenemente uma nova droga para as mentes inocentes. Há deuses tranqüilizadores onde devia haver traumas transformadores. Há deuses
fornidos por empresas nacionais,
capitais internacionais e aqueles
sustentados por dízimos ocasionais, que os pobres demais não se
esquecem de pagar para não ver.
Assim, orientam-se mal e loucamente, dando em dobro e sem razão aparente aquilo que tem pra
emprestar, afundando-se em dívidas impagáveis e dúvidas lamentáveis. Judas, por exemplo,
aceitou 30 dinheiros para rifar o
filho de um deles. Depois se arrependeu; porque gostava do rapaz
ou porque achava que valia mais,
quem poderá responder senão o
próprio traidor, "Ele", ou seu filho, que mandam dizer que vão
aparecer. São mandões, mas não
cumpridores de promessas. Dois
testamentos daqueles não bastaram para se fazerem esquecer?
São os deuses que devem implorar que lhes perdoem, porque seus
proselitismos são materialistas e
monoteístas, já que asseguram ter
o monopólio sobre o espólio da
eternidade. De lá ninguém voltou
para dizer a verdade; ou porque é
mesmo muito bom, ou simplesmente porque não existe...
Para o bem e para o mal é bom
lembrar aqueles que se sentem o
máximo, que certos fiéis cansados
dessa "re-ligação" em que estão
presos podem, no mínimo, dar
adeus à essa modalidade de relação. Neste momento, quer os deuses gostem, quer não, quer os homens encontrem algo pior do que
o Inferno, estarão livres uns dos
outros.
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