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O psicanalista Tales Ab'Sáber vê na obra de Machado de Assis -e na sua leitura pelo crítico Roberto Schwarz - a formulação de uma subjetividad e própria ao país, perversa,
que ilumina e questiona as teorias de Freud
Brasil no divã
Eduardo Knapp/Folha Imagem
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Tales Ab'Sáber, em seu consultório em SP; análise sobre Schwarz e Machado integrará livro de ensaios |
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O Brasil é um país de perversos.
O diagnóstico do psicanalista Tales Ab'Sáber, 41, foi feito após escutar o que tinham a dizer dois
mestres, um da periferia, outro
europeu: Machado de Assis e Sigmund Freud.
Num texto que fará parte de livro ainda em preparação, a ser
lançado até o fim do ano pela
Companhia das Letras, sobre a
obra do mais importante crítico
literário -e leitor de Machado-
do país, Roberto Schwarz, Ab'Sáber defende a idéia de que é possível, seguindo as idéias do homenageado, concluir que Machado
já falava de um tipo de sujeito,
próprio ao Brasil, que não se encaixa nos padrões do neurótico
europeu descrito por Freud.
Se o neurótico sofre ao se sujeitar à "lei", aos limites que a civilização lhe impõe, o sujeito que o
escritor brasileiro descortina nos
trópicos diz que a lei vale, mas não
para ele -não, ao menos, de forma decisiva. Esse tipo de sujeito,
diz o autor de "O Sonhar Restaurado" (ed. 34, 320 págs., R$ 44), a
psicanálise descreve, de forma genérica, como perverso.
"Em termos gerais, poderíamos
colocar a situação brasileira no lugar do perverso. Numa categoria
muito ampla. Quando nos aproximamos, chegamos a outras coisas mais interessantes, a uma formulação mais propriamente brasileira: oscilação entre não-ser e
ser outro, oscilação constante,
fragilidade de uma integridade do
eu", diz Tales.
E todos esses padrões já estavam em Machado, na forma da
narrativa de Brás Cubas, por
exemplo, explicitada por Schwarz. A importância de sua formulação para o pensamento brasileiro pode ser medida por alguns dos companheiros de Ab'Sáber na empreitada do
livro em preparação: o tucano-mor Fernando Henrique Cardoso
e o pós-petista Francisco de Oliveira (sociólogos), o secretário de
governo petista Paul Singer (economista) e o pensador pró-PSDB
José Arthur Giannotti (filósofo).
Na entrevista a seguir, Ab'Sáber
faz ainda a crítica do elogio a essa
"nossa diferença perversa e louca", empreendida segundo ele pelo "modernismo brasileiro", que
vai de Gilberto Freyre ao tropicalismo de Gil e Caetano.
Folha - O que Machado de Assis
tem a ensinar à psicanálise?
Tales Ab'Sáber - O Machado está
descobrindo uma outra subjetividade [diferente da do Freud]. Outra equação. Isso é espantoso, dada a rarefação teórica, conceitual,
institucional do país no século 19.
É um esforço monumental de autonomia, que permite que a gente
pegue esse mulato que escrevia
nos jornais locais e possa colocá-lo na mesma frase que Freud. E isso não é um disparate. Ambos estão falando, de posições diferentes, de um mesmo momento do
espírito -em que uma certa integridade do indivíduo está em xeque. Mas de formas diferentes. Esse é o problema brasileiro.
Folha - Como é que se sai de um
sujeito, o narrador machadiano,
que na sua forma de narrar apresenta uma certa sociedade, e se
chega a um sujeito psicanalítico?
Ab'Sáber - Esse é o problema da
correspondência entre formas sociais e formas subjetivas. Que seria a idéia de um vínculo psicanalítico entre o sujeito e o todo da vida social, de caráter dialético. Essas coisas estão em relação -não
estão cindidas nem se submetem
hierarquicamente uma à outra.
No Brasil, na tradição que passa
pela crítica literária e pela crítica
de arte -que investiga a singularidade e a relevância do caso brasileiro-, os pressupostos teóricos implicam forma literária, sociedade e sujeito. Tanto no Antonio Candido, quanto no Roberto,
mas também no Paulo Emílio
[Salles Gomes], aparecem teorias
do sujeito. Não é possível você
conceber uma forma estética que
tem conexão com uma forma social sem pensar o sujeito.
Folha - Mesmo de forma não explícita, o sujeito é uma questão do
pensamento social brasileiro?
Ab'Sáber - Não apenas nessa tradição marxista e dialética. Vai
aparecer desde o Joaquim Nabuco, no Machado de Assis, no Mário de Andrade, no Paulo Emílio,
no Glauber Rocha. São várias formulações. O "homem cordial", o
"herói sem nenhum caráter", a
volubilidade ilustrada. São várias
tentativas de nomear a equação
história-sujeito do ponto de vista
dessa periferia da modernidade,
do capital. E todas apontam um
ponto não coerente, não íntegro.
Folha - Como assim?
Ab'Sáber - É isso. A cordialidade,
que parece um dado de civilidade,
na verdade é o que opera a supressão do espaço público. Esses são
os paradoxos: aquilo que parece
ser é acompanhado imediatamente de um não-ser. Isso tudo é
matéria social brasileira, é estrutura da sociedade e da economia e
é uma forma do sujeito: oscilante
constantemente entre não-ser e
ser o outro.
Folha - O sr. chega a dizer que o
Machado tem o vislumbre de um
sujeito que não se organiza da maneira neurótica descrita por Freud,
que se organiza de outra maneira.
Ab'Sáber - Que o Roberto
Schwarz está tentando o tempo
todo nomear, usando categorias
como "volúvel", como solução de
descompromisso.
Folha - Que são coisas reconhecíveis para nós brasileiros e das quais
falamos muitas vezes positivamente: o jeitinho, a malemolência.
Ab'Sáber - Como se elas tivessem elementos utópicos. Essa é a
questão do modernismo, que
muitas vezes tem essa ambigüidade. Ele quer reconhecer uma matéria civilizatória própria ao Brasil, mesmo que negativa, e quer
acentuá-la como uma outra civilização. Em Gilberto Freyre, Mário
de Andrade; e vai desaguar no
tropicalismo. Essa nossa diferença perversa e louca contribuiria
para a ordem de razão do centro
com um tipo de lúdico, de espaço
não estruturado.
Folha - É um erro formular assim?
Ab'Sáber - Essa é uma equação
ideológica. É uma hipótese. Isso
seria a nossa contribuição ao processo civilizatório global. É um
pouco a posição do Gilberto Freyre, embora ele lamente a violência
que está ali, e isso vai até o tropicalismo -que também lamenta a
violência, mas acentua a positividade dessa estranheza.
Uma tradição de esquerda, da
qual eu gostaria de participar,
pensa que seria ótimo se de fato
isso contribuísse para o concerto
das nações, desde que houvesse
resgate das violências, que essa
mesma equação costuma manter,
costuma preservar. Porque o homem cordial é muito interessante,
mas ele impede que haja direitos
objetivos do outro. Essa cordialidade é problemática. Esse espaço
afetivo tende ao favor, e este ao
controle, que é oligárquico e pessoal. É sempre o mesmo raciocínio, que o Machado já pegou.
Folha - Como?
Ab'Sáber - O Freud vai desenhar,
com sua ordem de razão, a inscrição da lei numa vivência emocional primitiva, sexual e infantil,
que é o barramento do incesto.
Essa seria a lei que nos convocaria. A verdade é que a lei posiciona
o sujeito. Não há sujeito sem lei.
Ele se funda na lei, ele é lei.
Não precisamos ir até a esquina
para saber que a situação brasileira é diferente. Precisamos pensar
se a lei vai pegar ou não. Isso é corrente, é dito, e está aberto aí um
outro sujeito -aquele em que a
lei é um jogo estratégico, em que
ela existe, mas não existe. A grande questão é que a lei não tem eficácia simbólica forte. Nós sabemos disso. O produto é um mundo que em parte se anuncia como
lei, em parte como astúcia, como
para-além da lei. Essa tensão não
deixa de ser louca.
Folha - Existe uma categorização
clara, na psicanálise, para esse sujeito em que a lei vale, mas enfraquecida, não é?
Ab'Sáber - É todo o problema do
outro do neurótico, que já apareceu no Freud, que é o perverso.
Em termos freudianos, é o que goza fora da lei, fora da norma. A
psicanálise, de forma estrutural,
disse: temos o neurótico, o psicótico e o perverso. Seriam três posições de equação e de nomeação
da lei. Em termos gerais, poderíamos colocar a situação brasileira
no lugar do perverso. Numa categoria muito ampla.
Quando nos aproximamos,
chegamos a outras coisas mais interessantes, a uma formulação
mais propriamente brasileira: oscilação entre não-ser e ser outro,
oscilação constante, fragilidade
de uma integridade do eu. Essa diferenciação de jogos simbólicos
tem uma determinação histórica.
Não é nenhum Édipo geral e abstrato, é o lugar específico no jogo
do presente que põe essas equações.
Somos sujeitos insólitos, que
tendem à perversão. Sim, esfera
de direitos, "para mim, mas não
para meu vizinho". E a coisa vai ficando mais radical: "Para mim,
mas não para o meu irmão". Ou
amanhã, "para o meu filho, não
para mim". Todas imagens que
eu já vi no consultório.
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