São Paulo, sábado, 22 de abril de 2000


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LITERATURA
Lygia Fagundes Telles mantém o sétimo véu

Caio Guatelli/Folha Imagem
A escritora Lygia Fagundes Telles, que lança o livro "Invenção e Memória" pela editora Rocco


CYNARA MENEZES
especial para a Folha

Certo dia, a mãe da escritora Lygia Fagundes Telles disse para a jovem estudante de direito, pré-revolução sexual: "Minha filha, faça o que você fizer, guarde o seu sétimo véu".
Mais de 50 anos depois, ao redor dos 70 anos (ela não gosta de falar exatamente quantos. "Tenho a idade da terra", diz), Lygia, rindo, confessa que ainda não descobriu que tal sétimo véu será esse.
Pois há um véu fino, tênue, em seu novo livro, explícito no título: "Invenção e Memória" (Rocco). O que inventou Lygia e o que apenas relembrou? Ela não revela -põe o véu entre a memória e a imaginação. "É preciso obedecer o mistério", ensina.
Leia a seguir trechos da entrevista em que a escritora fala - impregnada de Páscoa, "a festa mais linda"- de religião, de memória, de saudade e de política: voltou ao socialismo da juventude, se diz "decepcionada" com o presidente Fernando Henrique Cardoso e declara voto no PT.

Folha - O que há de memória e de invenção em seu novo livro?
Lygia Fagundes Telles
- Na minha opinião, a invenção e a memória são uma coisa só. Não as considero separadas. Tem uma menina no livro que pode ser eu, mas também uma personagem que inventei. Jamais escreveria uma autobiografia, gosto de ler a dos outros. Você próprio tentar se desembrulhar não dá certo. É socrático: é impossível conhecer a si próprio, é mais fácil conhecer o outro.

Folha - À certa altura, também, já é difícil distinguir o que se inventa do que se viveu, não é?
Lygia
- É como um liquidificador, você põe banana, abacate, na hora de provar pode até identificar uma fruta ou outra, mas estão entranhadas. Também não interessa. Por que essa separação das coisas? É tão bom as coisas misturadas, os sexos misturados, os anjos e santos misturados com os demônios. O (poeta alemão Rainer Maria) Rilke dizia: "Não quero perder meus demônios porque neles também estão meus santos e vice-versa". Gosto dessa ambiguidade entre o bem e mal, que está no livro.

Folha - Tanto quanto invenção e mistério, bem e mal são indivisíveis?
Lygia
- A natureza humana é misturada demais. A crueldade e a bondade, os bons e os maus sentimentos. Alguns santos, como santo Agostinho, conseguiram que aquele lado, a banda podre, desaparecesse. Esse seria o triunfo do próprio cristianismo. Jesus Cristo também conseguiu.

Folha - O Cristo tinha uma certa vaidade, não tinha?
Lygia
- Os apóstolos tinham. Ele, não. Jesus Cristo, não (repete várias vezes). A paixão que tenho nesse planeta enfermo é Jesus Cristo. Ele era tolerante, sabia que um dos apóstolos o iria oferecer aos algozes e permitiu a convivência.

Folha - Jorge Luis Borges tem uma teoria de que o verdadeiro Cristo era Judas, e não Jesus.
Lygia
- É uma coisa extraordinária o que a imaginação humana faz em torno de tudo isso. Às vezes, tenho vontade de dizer: deixem Jesus Cristo em paz!

Folha - A sra. gosta de "O Evangelho segundo Jesus Cristo", de José Saramago?
Lygia
- Muito. Gosto dos agnósticos, eles são apaixonados por Deus. É uma negação da paixão. Negam e se dedicam a isso, se entregam. É a forma de paixão mais revolucionária que existe. Judas tinha paixão por Cristo. Roía as unhas, arrancava as orelhas, entregou Cristo e se matou. Só a morte, só a desaparição, poderia acabar com aquela fonte de sofrimento dele, aquela fonte de amor e de ódio.

Folha - Quer dizer que a sra. é uma escritora religiosa? Reza?
Lygia
- Acredito na reza. Tenho paixão por alguns santos. Por santa Terezinha, que não era essa água-com-açúcar que dizem. Era forte, densa, quase tão densa quanto a própria Tereza D'Ávila, que era uma santa filósofa, intelectual. Um dia, enquanto estava na cozinha, preparando o peixe, já tuberculosa, santa Terezinha olhou pela janela do convento, avistou o cemitério lá adiante. Disse: "E se tudo acabar ali?". Está aí a dúvida.

Folha - A sra. sempre gostou de rezar ou isso é recente?
Lygia
- Fui anjo de procissão, fui santa Terezinha do Menino Jesus, mamãe me punha nas festas. Mas não vou à igreja. Às vezes, na Semana Santa, gosto de ir ver a imagem de Jesus morto. Acho a Páscoa a festa mais linda que existe, a festa da ressurreição. Isso é uma coisa que me anima, me fortalece. Senão a vida fica insuportável. Saramago me disse que o Brasil é muito otimista. Eu disse para ele não se importar com a aparência frívola do Brasil, que isso é uma máscara. A vida inteira fui completamente consciente da miséria, dos governos desgovernados, afastados de nossa realidade.

Folha - Tem alguma preferência política?
Lygia
- Era socialista na juventude, agora virei socialista outra vez. Houve um tempo em que fiquei meio afastada de tudo, meio perplexa, mas de repente resolvi, como diria Machado de Assis, juntar as pontas: o começo e o fim. Estava meio desesperançada, e isso é ruim porque faz com que você de certo modo deponha as armas. Não pode depor as armas, tem de segurá-las até o fim. Seja a causa que for, é a tua causa.

Folha - O socialismo é a única saída?
Lygia
- Creio que sim. E existe, não venha me dizer que é decadente, é caipira, fora de moda. Enquanto houver miséria no mundo, como disse o professor Miguel Reale, haverá socialismo.

Folha - Vota em quem? No PT?
Lygia
- Vou votar, sim. Vou votar na Marta Suplicy (para a Prefeitura de São Paulo).

Folha - Votou no presidente Fernando Henrique?
Lygia
- Votei na primeira eleição, depois suspendi o juízo. Foi uma grande decepção para mim o governo dele. É um homem tão inteligente, tão culto, contudo não fez pelo Brasil aquilo que eu esperava. Sou uma jogadora, como meu pai, mas minhas apostas agora são outras em relação ao Brasil. No livro, eu falo da importância dos bombeiros. "Chame os bombeiros", o Brasil devia dizer. E eles viriam com as cordas.

Folha - Aos 70 anos, se sente uma pessoa imersa em memórias, em lembranças?
Lygia
- Não, não. Estou interessada em tudo. Minha curiosidade em relação às coisas que estão acontecendo é inesgotável. Quero saber das coisas. E, às vezes, com grande sofrimento. Não me iludo e ao mesmo tempo me iludo, porque, se não houver essa ilusão, esse sonho, estarei liquidada. Essa curiosidade é que é minha força.

Folha - Alguma saudade tem. Do seu marido, Paulo Emílio Salles Gomes (cineasta, morto em 1977)...
Lygia
- Saudade do que ele poderia ter sido e não foi. A usança que poderia ter dele, mas estava distraída. Enquanto você está vendo um crepúsculo ou um nascer do sol, quando vê aquele céu esbraseado, não aproveita devidamente aquela visão. Essa fugacidade, essa coisa tão provisória que nós somos, isso nos dá em certos instantes a ilusão da eternidade. Isso é que me dói um pouco. Eu era eterna, ele também. Não precisava me preocupar.

Folha - Acredita em reencarnação?
Lygia
- Sou espiritualista. Às vezes, acredito em reencarnação, às vezes, em transmigração das almas. Minha alma irá para uma flor, para um bicho, posso ser um arbusto, um peixe, um gato.

Folha - E o que acha que será em outra vida?
Lygia
- Não vou dizer, de repente um anjo ouve isso, e eu evoluí, já quero ser outra coisa. É preciso obedecer o mistério.


Livro: Invenção e Memória
Autora: Lygia Fagundes Telles
Editora: Rocco
Quanto: R$ 14,76 (125 págs.)


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