|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LITERATURA
Lygia Fagundes Telles mantém o sétimo véu
Caio Guatelli/Folha Imagem
|
A escritora Lygia Fagundes Telles, que lança o livro "Invenção e Memória" pela editora Rocco |
CYNARA MENEZES
especial para a Folha
Certo dia, a mãe da escritora
Lygia Fagundes Telles disse para a
jovem estudante de direito, pré-revolução sexual: "Minha filha,
faça o que você fizer, guarde o seu
sétimo véu".
Mais de 50 anos depois, ao redor dos 70 anos (ela não gosta de
falar exatamente quantos. "Tenho
a idade da terra", diz), Lygia, rindo, confessa que ainda não descobriu que tal sétimo véu será esse.
Pois há um véu fino, tênue, em
seu novo livro, explícito no título:
"Invenção e Memória" (Rocco).
O que inventou Lygia e o que apenas relembrou? Ela não revela
-põe o véu entre a memória e a
imaginação. "É preciso obedecer
o mistério", ensina.
Leia a seguir trechos da entrevista em que a escritora fala -
impregnada de Páscoa, "a festa
mais linda"- de religião, de memória, de saudade e de política:
voltou ao socialismo da juventude, se diz "decepcionada" com o
presidente Fernando Henrique
Cardoso e declara voto no PT.
Folha - O que há de memória e
de invenção em seu novo livro?
Lygia Fagundes Telles - Na minha opinião, a invenção e a memória são uma coisa só. Não as
considero separadas. Tem uma
menina no livro que pode ser eu,
mas também uma personagem
que inventei. Jamais escreveria
uma autobiografia, gosto de ler a
dos outros. Você próprio tentar se
desembrulhar não dá certo. É socrático: é impossível conhecer a si
próprio, é mais fácil conhecer o
outro.
Folha - À certa altura, também, já é difícil distinguir o que
se inventa do que se viveu, não
é?
Lygia - É como um liquidificador, você põe banana, abacate, na
hora de provar pode até identificar uma fruta ou outra, mas estão
entranhadas. Também não interessa. Por que essa separação das
coisas? É tão bom as coisas misturadas, os sexos misturados, os anjos e santos misturados com os
demônios. O (poeta alemão Rainer Maria) Rilke dizia: "Não quero perder meus demônios porque
neles também estão meus santos e
vice-versa". Gosto dessa ambiguidade entre o bem e mal, que está
no livro.
Folha - Tanto quanto invenção
e mistério, bem e mal são indivisíveis?
Lygia - A natureza humana é
misturada demais. A crueldade e
a bondade, os bons e os maus sentimentos. Alguns santos, como
santo Agostinho, conseguiram
que aquele lado, a banda podre,
desaparecesse. Esse seria o triunfo
do próprio cristianismo. Jesus
Cristo também conseguiu.
Folha - O Cristo tinha uma certa vaidade, não tinha?
Lygia - Os apóstolos tinham.
Ele, não. Jesus Cristo, não (repete
várias vezes). A paixão que tenho
nesse planeta enfermo é Jesus
Cristo. Ele era tolerante, sabia que
um dos apóstolos o iria oferecer
aos algozes e permitiu a convivência.
Folha - Jorge Luis Borges tem
uma teoria de que o verdadeiro
Cristo era Judas, e não Jesus.
Lygia - É uma coisa extraordinária o que a imaginação humana
faz em torno de tudo isso. Às vezes, tenho vontade de dizer: deixem Jesus Cristo em paz!
Folha - A sra. gosta de "O
Evangelho segundo Jesus Cristo", de José Saramago?
Lygia - Muito. Gosto dos agnósticos, eles são apaixonados por
Deus. É uma negação da paixão.
Negam e se dedicam a isso, se entregam. É a forma de paixão mais
revolucionária que existe. Judas
tinha paixão por Cristo. Roía as
unhas, arrancava as orelhas, entregou Cristo e se matou. Só a
morte, só a desaparição, poderia
acabar com aquela fonte de sofrimento dele, aquela fonte de amor
e de ódio.
Folha - Quer dizer que a sra. é
uma escritora religiosa? Reza?
Lygia - Acredito na reza. Tenho
paixão por alguns santos. Por santa Terezinha, que não era essa
água-com-açúcar que dizem. Era
forte, densa, quase tão densa
quanto a própria Tereza D'Ávila,
que era uma santa filósofa, intelectual. Um dia, enquanto estava
na cozinha, preparando o peixe, já
tuberculosa, santa Terezinha
olhou pela janela do convento,
avistou o cemitério lá adiante.
Disse: "E se tudo acabar ali?". Está
aí a dúvida.
Folha - A sra. sempre gostou
de rezar ou isso é recente?
Lygia - Fui anjo de procissão, fui
santa Terezinha do Menino Jesus,
mamãe me punha nas festas. Mas
não vou à igreja. Às vezes, na Semana Santa, gosto de ir ver a imagem de Jesus morto. Acho a Páscoa a festa mais linda que existe, a
festa da ressurreição. Isso é uma
coisa que me anima, me fortalece.
Senão a vida fica insuportável. Saramago me disse que o Brasil é
muito otimista. Eu disse para ele
não se importar com a aparência
frívola do Brasil, que isso é uma
máscara. A vida inteira fui completamente consciente da miséria,
dos governos desgovernados,
afastados de nossa realidade.
Folha - Tem alguma preferência política?
Lygia - Era socialista na juventude, agora virei socialista outra
vez. Houve um tempo em que fiquei meio afastada de tudo, meio
perplexa, mas de repente resolvi,
como diria Machado de Assis,
juntar as pontas: o começo e o
fim. Estava meio desesperançada,
e isso é ruim porque faz com que
você de certo modo deponha as
armas. Não pode depor as armas,
tem de segurá-las até o fim. Seja a
causa que for, é a tua causa.
Folha - O socialismo é a única
saída?
Lygia - Creio que sim. E existe,
não venha me dizer que é decadente, é caipira, fora de moda. Enquanto houver miséria no mundo, como disse o professor Miguel
Reale, haverá socialismo.
Folha - Vota em quem? No PT?
Lygia - Vou votar, sim. Vou votar na Marta Suplicy (para a Prefeitura de São Paulo).
Folha - Votou no presidente
Fernando Henrique?
Lygia - Votei na primeira eleição, depois suspendi o juízo. Foi
uma grande decepção para mim o
governo dele. É um homem tão
inteligente, tão culto, contudo não
fez pelo Brasil aquilo que eu esperava. Sou uma jogadora, como
meu pai, mas minhas apostas
agora são outras em relação ao
Brasil. No livro, eu falo da importância dos bombeiros. "Chame os
bombeiros", o Brasil devia dizer.
E eles viriam com as cordas.
Folha - Aos 70 anos, se sente
uma pessoa imersa em memórias, em lembranças?
Lygia - Não, não. Estou interessada em tudo. Minha curiosidade
em relação às coisas que estão
acontecendo é inesgotável. Quero
saber das coisas. E, às vezes, com
grande sofrimento. Não me iludo
e ao mesmo tempo me iludo, porque, se não houver essa ilusão, esse sonho, estarei liquidada. Essa
curiosidade é que é minha força.
Folha - Alguma saudade tem.
Do seu marido, Paulo Emílio Salles Gomes (cineasta, morto em
1977)...
Lygia - Saudade do que ele poderia ter sido e não foi. A usança
que poderia ter dele, mas estava
distraída. Enquanto você está
vendo um crepúsculo ou um nascer do sol, quando vê aquele céu
esbraseado, não aproveita devidamente aquela visão. Essa fugacidade, essa coisa tão provisória
que nós somos, isso nos dá em
certos instantes a ilusão da eternidade. Isso é que me dói um pouco. Eu era eterna, ele também.
Não precisava me preocupar.
Folha - Acredita em reencarnação?
Lygia - Sou espiritualista. Às vezes, acredito em reencarnação, às
vezes, em transmigração das almas. Minha alma irá para uma
flor, para um bicho, posso ser um
arbusto, um peixe, um gato.
Folha - E o que acha que será
em outra vida?
Lygia - Não vou dizer, de repente um anjo ouve isso, e eu evoluí,
já quero ser outra coisa. É preciso
obedecer o mistério.
Livro: Invenção e Memória
Autora: Lygia Fagundes Telles
Editora: Rocco
Quanto: R$ 14,76 (125 págs.)
Texto Anterior: Literatura: Bloom se veste de Falstaff em "Invenção" Próximo Texto: Livro - Lançamentos: "Viagem à Semente" trilha odisséia de Gabo Índice
|