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ANÁLISE
Por que ler essas ruínas de palavras e coisas?
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Sobre o quadro "Angelus Novus", de Paul Klee, em que
nosso olhar se assusta ao encontrar os olhos pasmados de um anjo metade inocente, metade perplexo, Walter Benjamin diz que
estes olhos vêem "uma única catástrofe que continua a amontoar
destroços sobre destroços" e supõe que o anjo "gostaria de se deter e de despertar os mortos", mas
uma tempestade vinda do futuro
o impede. Esta tempestade é o
Progresso, que empurra o anjo
para o futuro, enquanto "à sua
frente o monte de ruínas cresce
em direção ao céu".
O futuro, para onde o anjo parece não querer ir, é o lugar onde
agora estamos nós, que, como ele,
continuamos a contemplar ruínas. E é esse o material de que é
feita a substância e a linguagem de
António Lobo Antunes.
Psiquiatra, ou "catalogador da
angústia", como ele mesmo diz,
soldado da guerra em Angola, lá
no "cu de Judas", nome de um de
seus romances, o que se lê em
suas narrativas são pedaços, estilhaços, desencontros, dúvidas, cacos que só aos poucos vão formando uma história. Como a
própria vida, feita de planos tortos e fragmentados, que só ilusoriamente compõem uma sucessão linear.
Um parágrafo feito somente da
palavra "ou"; outro, de "não sei";
outro, de "imagino que disse";
frases que terminam sem ponto,
parênteses que não fecham, discursos interpolados, tempos que
se misturam, vozes narrativas que
se escondem são marcas de um
discurso que imita e que deriva da
ausência de sentido das coisas, assim como da visão de restos de
corpos explodidos por minas, numa Angola em que os pretos possuem pretos "e estes os seus pretos ainda em degraus sucessivos
descendo ao fundo da miséria,
aleijados, leprosos, escravos de escravos, cães" e onde, segundo o
autor, os portugueses foram procurar "transformar a vingança de
mandar no que fingíamos ser a
dignidade de mandar".
Portugal, por sua vez, nos livros
de Lobo Antunes, deixa de ser o
país da saudade e de uma certa
melancolia orgulhosa, aquela de
Fernando Pessoa, para se reduzir
a um país onde se fornica e se escarra. Mas que essa definição não
permita que ninguém se sinta superior aos portugueses, porque
sua obra atinge todos nós, "que
não passamos de facto de débeis
mentais habilidosos consertando
os fusíveis da alma à custa de expedientes de arame".
Por que ler, então, essas ruínas
de palavras e de coisas? Por que
olhar se o nosso olhar será sempre
aquele mesmo olhar de impotência do anjo de Klee?
Talvez porque algum sentido só
possa nascer da percepção de que
o sentido é uma das matérias que
está mais em falta no mundo. Ou
porque o esgarçamento da linguagem, que nos mostra Lobo
Antunes, seja o único sentido com
o qual ainda se possa tecer um outro fio.
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