São Paulo, sábado, 22 de abril de 2006

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ANÁLISE

Por que ler essas ruínas de palavras e coisas?

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Sobre o quadro "Angelus Novus", de Paul Klee, em que nosso olhar se assusta ao encontrar os olhos pasmados de um anjo metade inocente, metade perplexo, Walter Benjamin diz que estes olhos vêem "uma única catástrofe que continua a amontoar destroços sobre destroços" e supõe que o anjo "gostaria de se deter e de despertar os mortos", mas uma tempestade vinda do futuro o impede. Esta tempestade é o Progresso, que empurra o anjo para o futuro, enquanto "à sua frente o monte de ruínas cresce em direção ao céu".
O futuro, para onde o anjo parece não querer ir, é o lugar onde agora estamos nós, que, como ele, continuamos a contemplar ruínas. E é esse o material de que é feita a substância e a linguagem de António Lobo Antunes.
Psiquiatra, ou "catalogador da angústia", como ele mesmo diz, soldado da guerra em Angola, lá no "cu de Judas", nome de um de seus romances, o que se lê em suas narrativas são pedaços, estilhaços, desencontros, dúvidas, cacos que só aos poucos vão formando uma história. Como a própria vida, feita de planos tortos e fragmentados, que só ilusoriamente compõem uma sucessão linear.
Um parágrafo feito somente da palavra "ou"; outro, de "não sei"; outro, de "imagino que disse"; frases que terminam sem ponto, parênteses que não fecham, discursos interpolados, tempos que se misturam, vozes narrativas que se escondem são marcas de um discurso que imita e que deriva da ausência de sentido das coisas, assim como da visão de restos de corpos explodidos por minas, numa Angola em que os pretos possuem pretos "e estes os seus pretos ainda em degraus sucessivos descendo ao fundo da miséria, aleijados, leprosos, escravos de escravos, cães" e onde, segundo o autor, os portugueses foram procurar "transformar a vingança de mandar no que fingíamos ser a dignidade de mandar".
Portugal, por sua vez, nos livros de Lobo Antunes, deixa de ser o país da saudade e de uma certa melancolia orgulhosa, aquela de Fernando Pessoa, para se reduzir a um país onde se fornica e se escarra. Mas que essa definição não permita que ninguém se sinta superior aos portugueses, porque sua obra atinge todos nós, "que não passamos de facto de débeis mentais habilidosos consertando os fusíveis da alma à custa de expedientes de arame".
Por que ler, então, essas ruínas de palavras e de coisas? Por que olhar se o nosso olhar será sempre aquele mesmo olhar de impotência do anjo de Klee?
Talvez porque algum sentido só possa nascer da percepção de que o sentido é uma das matérias que está mais em falta no mundo. Ou porque o esgarçamento da linguagem, que nos mostra Lobo Antunes, seja o único sentido com o qual ainda se possa tecer um outro fio.


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