São Paulo, sábado, 22 de abril de 2006

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LIVROS

NARRATIVA/"NA PATAGÔNIA"

Sai reedição do marco na literatura de viagem, que resulta de seus seis meses passados na região

Patagônia mítica de Chatwin desafia história

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

"Fui para a Patagônia." Foi assim, dizem, que o então crítico de arte do jornal inglês "Sunday Times" pediu demissão, por telegrama, logo após desembarcar na Argentina.
Mas por que "dizem"? Porque, quando o assunto é Bruce Chatwin (1940-1989), autor do clássico da literatura "Na Patagônia" (1977), pouco pode ser afirmado com certeza. O autor britânico é conhecido não só pelo valor literário de sua obra mas também pela sua acentuada mitomania.
Quem lê desavisadamente esse romance e topa com descrições como: "No litoral norte dos Primeiros Estreitos, um farol listrado de laranja e branco se destacava numa praia coberta de seixos cristalinos, mexilhões púrpura e o escarlate de caranguejos destroçados" terá a certeza de estar diante tanto de um instantâneo do maravilhoso como de um registro acurado, feito por alguém preocupado em transmitir com detalhes aquilo que está vendo.
Mas quem conhece um pouco da fama de Chatwin duvidará não apenas das tais listras laranjas do farol como até mesmo do fato de o escritor ter estado em tal praia algum dia. Seus relatos foram seguidamente contestados por pessoas que entrevistava e que viam suas histórias alteradas no papel.
Ainda assim, "Na Patagônia", relançado agora por aqui, segue sendo a mais importante referência literária sobre a região, além de marco da literatura de viagem.
Isso porque as dúvidas sobre o que é fato e o que é ficção apenas potencializam a forma como constrói um lugar fantasioso, cheio de paisagens inóspitas, de fauna e flora mágicos e coloridos e que acolhia tanto a refugiados de agruras européias como a foras-da-lei norte-americanos.
Como uma versão árida do realismo mágico latino-americano, seu estilo também se alimentava de uma matéria-prima que se prestava bastante a isso.
Afinal, tudo o que Chatwin escutou nos seis meses que passou na Patagônia foram histórias de pessoas há muito afastadas das origens européias e isoladas da atualidade. Basta lembrar que o livro se passa em meados dos anos 70, quando Argentina e Chile viviam imersos em turbulência social e golpes militares, e que isso não tem nenhuma importância no texto. Descoladas da história, aquelas pessoas também tinham, elas próprias, transformado suas existências em ficção.
Chatwin era obcecado com a beleza. Especialista em arqueologia e em artes plásticas -havia sido diretor da Sotheby's-, o escritor era extremamente vaidoso.
Na biografia escrita por Nicholas Shakespeare, está o relato de um de seus amigos, contando que Chatwin, que tinha traços delicados e olhos azuis, se achava tão belo que, mesmo dirigindo, admirava o rosto pelo retrovisor.
Morreu aos 49, em decorrência da Aids -que tentou esconder até o fim. Seu obituário no "The Times" dizia: "Bruce Chatwin, o escritor, morreu na França ontem, onde convalescia de uma rara doença nos ossos contraída na China". Outra peça de ficção que, coerentemente, encerrava uma vida imersa entre fato e fantasia.


Na Patagônia
    
Autor:
Bruce Chatwin
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 46,50 (310 págs.)


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