|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MÚSICA ERUDITA LANÇAMENTOS
Orpheus faz Mozart soar como a primeira vez
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
Faz dois séculos que a música de
Mozart virou adjetivo. Mas dizer
que ela mesma é "mozartiana"
não ajuda ninguém a entender o
que se passa nas sinfonias, sonatas, concertos, quartetos e óperas
daquele que, para muita gente, é o
maior compositor da nossa tradição. O "tom" de Mozart é um
mistério, algo que a palavra "mozartiano" só conota para quem já
não precisa dela.
Há um momento na "Sinfonia
nš 40" que ilustra bem esse ponto.
Logo após a exposição do primeiro tema, depois que a orquestra
toca seus acordes de dominante,
os fagotes sobressaem, com um
pedaço de escala descendente, em
terças, contra o qual os violinos
retomam o soluço do tema.
Descrito assim, ou mesmo consultado na partitura, não poderia
ser mais simples: só uma cadência.
Mas o efeito é uma das emoções da
vida e parece conjugar tragédia e
bênção, fatalidade e recompensa,
de uma forma que metáfora alguma dá conta. O início da "Sinfonia nš 29" é outro exemplo: ali é o
próprio tema que parece cair no
mundo como uma revelação, simultaneamente com o contra-tema, outra verdade rara.
Que o autor dessa música tivesse, na época, só 18 anos é um milagre menor. O grande milagre é que
exista música assim (que qualquer
um, de qualquer idade tenha sido
capaz de imaginar essas frases). É
uma outra língua da humanidade,
tão acessível à compreensão que,
frente a ela, as palavras se retraem.
De E.T.A. Hoffmann, Schumann
e Kierkegaard, no século 19, até o
teólogo Karl Barth ou, em escala
menor, mas para nós significativa,
o crítico Otto Maria Carpeaux e o
poeta Murilo Mendes, a avaliação
de Mozart como gênio supremo
da cultura segue um padrão constante, mas por motivos diversos.
A mesma "Sinfonia nš 40" era
descrita por Hoffmann como expressão do "puro romantismo" e
por Schumann, como exemplo insuperável de "graça, placidez,
contentamento: as verdadeiras
marcas da arte da Antiguidade".
Os dois têm razão, sem dúvida; e
a contradição dos juízos só serve
para mostrar que Mozart era, é e
sempre será muito maior do que
seus intérpretes. Provavelmente
não vai se saber nunca como definir o que é "mozartiano", exceto
apontando de volta para a música
e nos fazendo ouvir.
O novo CD da Orpheus Chamber Orchestra consegue fazer mais
do que isso: faz ouvir como pela
primeira vez -ou quase. Tocando
sem regente (a Orpheus não tem
maestro e os músicos se alternam
nas posições principais), a orquestra atinge um nível de integração
maior, não menor, que o habitual.
Comparações servem para revelar qualidades: de uma audição
comparada da "Sinfonia nš 29",
tocada por eles e pela London
Chamber Orchestra (gravação da
Virgin lançada há algum tempo no
Brasil, com preço convidativo),
salta aos ouvidos a energia dos
americanos e a definição impressionante de contornos, acentos,
fins de frase.
É uma orquestra que continua
soando incrivelmente jovem, 25
anos depois de criada e mesmo
mantendo boa parte dos músicos
esse tempo todo.
Mozart nunca é fácil de tocar, a
despeito do que possa pensar um
ouvinte casual. Tudo fica exposto,
não há onde se esconder. Leveza e
gravidade se combinam, muitas
vezes na mesma frase ou compasso. O "tom mozartiano" não é
para qualquer um. Com obras
mais abertamente dramáticas, como a "Sinfonia nš 40" (em sol
menor, a tonalidade trágica em
Mozart), ou a "nš 29", cuja claridade é sempre filtrada pelos cromatismos, a dicção da música se
dá, virtualmente, por si.
Mas em peças mais abstratas, como a "Sinfonia nš 33", o classicismo preserva suas sombras sob a
superfície, como esculturas perfeitas, que só insinuam o terror de
dentro.
Livre do peso das grandes orquestras tradicionais, um peso
que não é apenas questão de volume, a Orpheus está a meio caminho entre os hábitos antigos de interpretação e a interpretação da
música antiga segundo os novos
hábitos. Acertadamente, eles não
fazem nenhuma tentativa de imitar as orquestras de especialistas
em música antiga, não mudam o
estilo das arcadas ou da articulação, não tocam com instrumentos
originais, não alteram andamentos (o primeiro movimento da
"Sinfonia nš 40" soa rápido, mas
a indicação de tempo é "molto allegro", e ele só é tocado mais lento
por concessão ao "romantismo"
do tema).
O compromisso dessa orquestra
é consigo mesma e eles já se tornaram uma referência pela bravura e
limpidez, que parece especialmente apropriada a essas sinfonias. De
bônus, oferecem os melhores sopros em atividade: até as flautas
ganham um véu sobrenatural nessa gravação, muito distante do infantilismo de costume ou da nostalgia pastoral.
Para Karl Barth, que já no fim da
vida lhe dedicou um livro, a música de Mozart tem "a textura exata" do mundo, uma ordem intimamente assimilada, e não, como
em Bach, uma "mensagem". Mozart também não faz confissões,
como Beethoven; ele encarna a
"divindade viva" de que Barth fala em seus tratados. A música de
Mozart "nos dá permissão para
viver". Quando se pensa nele,
nosso sentimento é uma mescla de
alegria e gratidão, mas uma gratidão impessoal, pela simples existência dessa música.
A gratidão por esse disco é mais
dirigida: à orquestra nova-iorquina, que andou passando por uma
crise, mas parece ter se recuperado em grande estilo. Se a memória
fosse uma musa mais generosa,
cada um de nós lembraria quando
ouviu a "Sinfonia nš 40" pela primeira vez. A reaudição da reaudição da reaudição nunca tem o
mesmo impacto; mas dessa gravação, pelo menos, ninguém agora
vai esquecer.
A boa notícia é que ela faz parte
de uma série. Nem tudo no mundo
é desastre; ao que tudo indica, vamos ter outras sinfonias em breve,
para nos fazer respirar.
Disco: Sinfonias nšs 29, 33, 40
Compositor: Wolfgang Amadeus Mozart
Orquestra: Orpheus Chamber Orchestra
Lançamento: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 18, em média
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|