São Paulo, quarta, 22 de abril de 1998

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MÚSICA ERUDITA LANÇAMENTOS
Orpheus faz Mozart soar como a primeira vez

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Faz dois séculos que a música de Mozart virou adjetivo. Mas dizer que ela mesma é "mozartiana" não ajuda ninguém a entender o que se passa nas sinfonias, sonatas, concertos, quartetos e óperas daquele que, para muita gente, é o maior compositor da nossa tradição. O "tom" de Mozart é um mistério, algo que a palavra "mozartiano" só conota para quem já não precisa dela.
Há um momento na "Sinfonia nš 40" que ilustra bem esse ponto. Logo após a exposição do primeiro tema, depois que a orquestra toca seus acordes de dominante, os fagotes sobressaem, com um pedaço de escala descendente, em terças, contra o qual os violinos retomam o soluço do tema.
Descrito assim, ou mesmo consultado na partitura, não poderia ser mais simples: só uma cadência. Mas o efeito é uma das emoções da vida e parece conjugar tragédia e bênção, fatalidade e recompensa, de uma forma que metáfora alguma dá conta. O início da "Sinfonia nš 29" é outro exemplo: ali é o próprio tema que parece cair no mundo como uma revelação, simultaneamente com o contra-tema, outra verdade rara.
Que o autor dessa música tivesse, na época, só 18 anos é um milagre menor. O grande milagre é que exista música assim (que qualquer um, de qualquer idade tenha sido capaz de imaginar essas frases). É uma outra língua da humanidade, tão acessível à compreensão que, frente a ela, as palavras se retraem.
De E.T.A. Hoffmann, Schumann e Kierkegaard, no século 19, até o teólogo Karl Barth ou, em escala menor, mas para nós significativa, o crítico Otto Maria Carpeaux e o poeta Murilo Mendes, a avaliação de Mozart como gênio supremo da cultura segue um padrão constante, mas por motivos diversos.
A mesma "Sinfonia nš 40" era descrita por Hoffmann como expressão do "puro romantismo" e por Schumann, como exemplo insuperável de "graça, placidez, contentamento: as verdadeiras marcas da arte da Antiguidade".
Os dois têm razão, sem dúvida; e a contradição dos juízos só serve para mostrar que Mozart era, é e sempre será muito maior do que seus intérpretes. Provavelmente não vai se saber nunca como definir o que é "mozartiano", exceto apontando de volta para a música e nos fazendo ouvir.
O novo CD da Orpheus Chamber Orchestra consegue fazer mais do que isso: faz ouvir como pela primeira vez -ou quase. Tocando sem regente (a Orpheus não tem maestro e os músicos se alternam nas posições principais), a orquestra atinge um nível de integração maior, não menor, que o habitual.
Comparações servem para revelar qualidades: de uma audição comparada da "Sinfonia nš 29", tocada por eles e pela London Chamber Orchestra (gravação da Virgin lançada há algum tempo no Brasil, com preço convidativo), salta aos ouvidos a energia dos americanos e a definição impressionante de contornos, acentos, fins de frase.
É uma orquestra que continua soando incrivelmente jovem, 25 anos depois de criada e mesmo mantendo boa parte dos músicos esse tempo todo.
Mozart nunca é fácil de tocar, a despeito do que possa pensar um ouvinte casual. Tudo fica exposto, não há onde se esconder. Leveza e gravidade se combinam, muitas vezes na mesma frase ou compasso. O "tom mozartiano" não é para qualquer um. Com obras mais abertamente dramáticas, como a "Sinfonia nš 40" (em sol menor, a tonalidade trágica em Mozart), ou a "nš 29", cuja claridade é sempre filtrada pelos cromatismos, a dicção da música se dá, virtualmente, por si.
Mas em peças mais abstratas, como a "Sinfonia nš 33", o classicismo preserva suas sombras sob a superfície, como esculturas perfeitas, que só insinuam o terror de dentro.
Livre do peso das grandes orquestras tradicionais, um peso que não é apenas questão de volume, a Orpheus está a meio caminho entre os hábitos antigos de interpretação e a interpretação da música antiga segundo os novos hábitos. Acertadamente, eles não fazem nenhuma tentativa de imitar as orquestras de especialistas em música antiga, não mudam o estilo das arcadas ou da articulação, não tocam com instrumentos originais, não alteram andamentos (o primeiro movimento da "Sinfonia nš 40" soa rápido, mas a indicação de tempo é "molto allegro", e ele só é tocado mais lento por concessão ao "romantismo" do tema).
O compromisso dessa orquestra é consigo mesma e eles já se tornaram uma referência pela bravura e limpidez, que parece especialmente apropriada a essas sinfonias. De bônus, oferecem os melhores sopros em atividade: até as flautas ganham um véu sobrenatural nessa gravação, muito distante do infantilismo de costume ou da nostalgia pastoral.
Para Karl Barth, que já no fim da vida lhe dedicou um livro, a música de Mozart tem "a textura exata" do mundo, uma ordem intimamente assimilada, e não, como em Bach, uma "mensagem". Mozart também não faz confissões, como Beethoven; ele encarna a "divindade viva" de que Barth fala em seus tratados. A música de Mozart "nos dá permissão para viver". Quando se pensa nele, nosso sentimento é uma mescla de alegria e gratidão, mas uma gratidão impessoal, pela simples existência dessa música.
A gratidão por esse disco é mais dirigida: à orquestra nova-iorquina, que andou passando por uma crise, mas parece ter se recuperado em grande estilo. Se a memória fosse uma musa mais generosa, cada um de nós lembraria quando ouviu a "Sinfonia nš 40" pela primeira vez. A reaudição da reaudição da reaudição nunca tem o mesmo impacto; mas dessa gravação, pelo menos, ninguém agora vai esquecer.
A boa notícia é que ela faz parte de uma série. Nem tudo no mundo é desastre; ao que tudo indica, vamos ter outras sinfonias em breve, para nos fazer respirar.

Disco: Sinfonias nšs 29, 33, 40 Compositor: Wolfgang Amadeus Mozart
Orquestra: Orpheus Chamber Orchestra
Lançamento: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 18, em média


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