São Paulo, segunda-feira, 22 de maio de 2000


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LITERATURA
"Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século" engloba desde Machado de Assis até autores contemporâneos

Obra analisa evolução do conto nacional

ALVARO MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tomado de corpo inteiro, o retrato literário do Brasil no século 20 coube num único volume, ou em 620 páginas, que o leitor pode sustentar numa única mão.
"Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século" não é apenas a mais ambiciosa e completa antologia do gênero realizada até hoje.
Para além de seu valor enquanto análise da evolução de estilos, numa roda-viva de 77 autores -de Machado de Assis a Fernando Bonassi-, o livro desenha com traço concentrado o perfil de um povo e de uma nação, das capitais infladas à decadência interiorana (veja no quadro os destaques de cada um dos períodos abordados).
Da mesma maneira que o gênero breve obriga os autores à renúncia de preâmbulos e ornamentações, o organizador da antologia, o carioca Ítalo Moricone, 46, professor de literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, lançou mão de mais de uma técnica para apertar o cerco.
O critério mais óbvio foi o da "representatividade", sublinhado no projeto encomendado pela editora Objetiva. Assim, elegeram-se, de saída, três autores cujas escritas modelaram a produção das gerações que lhes seguiram: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Rubem Fonseca.
Dessa "santíssima trindade do conto brasileiro", como define Moricone, o "pai" Rosa é a ausência fragorosa da edição. Explica-se: os herdeiros do escritor, filha e sobrinhos, não chegaram a um acordo com a editora Objetiva, exigindo de 10 a 20 vezes a quantia paga aos demais selecionados. "Usamos um critério político, de isonomia, e todos receberam o mesmo, inclusive os autores mais novos", diz Isa Pessoa, diretora-executiva do projeto.
De outro lado, sete autores caíram em domínio público, e nada pagaram a seus herdeiros. Outros receberam um pouco mais, já que figuram duas ou mais vezes nos seis segmentos cronológicos em que se repartiu o volume.
"A repetição foi uma maneira de destacar que há alguns nomes principais, que produziram muito e influenciaram toda a produção literária", diz Moricone. Na segunda metade do século, os "repetíveis" foram Lispector, Fonseca, Lygia Fagundes Telles, José J. Veiga, Otto Lara Resende e Sérgio Sant'Anna.
No caso de o leitor desejar completar o volume, informe-se que o organizador havia selecionado os seguintes contos de Guimarães Rosa, publicados nos anos 60: "As Margens da Alegria" e "A Terceira Margem do Rio" (do livro "Primeiras Estórias"); além de "De- senredo" (de "Tutaméia").
"À parte a tristeza dessa lacuna, podemos julgar que Rosa é solitário em sua grandiosidade e que nenhum autor de contos deve a ele, enquanto todos devem a Clarice e devem a Rubem, que instauraram uma linguagem que prevaleceu até o final dos anos 80, no mínimo. Com estes, passou-se a falar das coisas urbanas de uma forma coloquial culta", avalia Moricone.
O organizador revela, ainda, que quando se abriu a vaga de Rosa, pensou em incluir alguma crônica-conto de Nelson Rodrigues. Porém preferiu dar espaço a autores contemporâneos, assumindo francamente a premissa de que a produção do gênero se intensifica e melhora extraordinariamente a partir dos anos 60.
Encontra-se nas primeiras páginas do livro, no entanto, um texto cuja matemática literária é tão precisa que tudo o que se lê depois tem sabor de anticlímax. O nome do conto, passado no Rio de Janeiro do tempo dos escravos, é "Pai contra Mãe", e o autor, Machado de Assis.
Na escolha desse título, delineia-se ainda outro procedimento da antologia: uma mesma temática é retomada ao longo das décadas, desnudando-se assim as nuanças de suas transformações sociais. Percebe-se, por exemplo, a profundidade da marca da escravidão, primeiro recortada a bisturi por Machado. Depois de 30 anos, desabrocha o paternalismo piegas de "Negrinha", clássico de Monteiro Lobato.
Já nos anos 50, retrata-se o preconceito dissimulado ("As Cores", jóia de Orígenes Lessa em boa hora recuperada). Por fim, nos anos 90 foi possível escolher um autor negro militante: Márcio Barbosa, com o belo e sentimental "Viver Outra Vez" (95).
Ainda quanto a esse tema, o leitor talvez sinta falta de "A Morte da Porta-Estandarte", de Aníbal Machado, texto incluído em grande número de antologias. O organizador descartou-o por considerá-lo ultrapassado em seu "olhar exterior da festa negra".
De Aníbal, Moricone preferiu o pungente "Viagem aos Seios de Duília", trajetória de retorno da urbe às raízes do interior, que recebeu interessante adaptação cinematográfica nos anos 70.
A rigor, aliás, qualquer um desses cem contos seria uma ótima escolha para o roteiro de um filme, o que dá a idéia do prazer que o leitor sente com a leitura do volume.


Livro: Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século     
Organizador: Ítalo Moricone
Lançamento: editora Objetiva (620 págs.)
Quanto: R$ 49,90


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