|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CINEMA
Para Lucrecia Martel, produção argentina cria movimento para "reunir pedaços de uma sociedade fragmentada"
Nova geração quer retomar sua história
DA REDAÇÃO
Leia a seguir a continuação da
entrevista com os cineastas Pablo
Trapero, Daniel Burman, Lucrecia Martel e Pablo Reyero.
(WALTER SALLES)
Pablo Trapero - Mais importante
do que a questão de ser novo ou
não, de ser original ou não, é o fato de que estamos vivendo uma
etapa de maturidade diferente
dentro de uma tradição do cinema argentino. Um movimento é
algo que surge independentemente. De repente todos nos demos conta de que fazíamos filmes,
éramos amigos, tínhamos uma
forma de vida em comum, de que
o cinema estava em nossa vida como uma coisa quase musical.
Lucrecia Martel - Por diferentes
razões, somos uma geração que
sente uma enorme necessidade de
referências fortes. Não se deve esquecer que esta geração surgiu
depois de uma que foi exterminada nos anos 70. A necessidade de
relatar o próximo, de ancorar
nossos relatos àquilo que se conhece de modo imediato, de que
as interpretações sejam as mais
autênticas possíveis -todas essas
coisas que se encontram bastante
nos novos filmes têm a ver com a
necessidade de que a história volte a ser nossa própria história.
Durante décadas, vivemos num
país que contou sua história em
cima das mentiras mais atrozes.
Nossa geração se deu conta de
que havia realidades paralelas e
aterradoras. Se existe algo que pode marcar essa nova geração, é a
necessidade de juntar esses fios
paralelos, de reunir os pedaços de
uma sociedade fragmentada.
Folha - Quando Truffaut lançou o
manifesto contra o cinema clássico
francês, houve um rompimento
com a geração que o antecedeu. Se
há um novo cinema na Argentina,
ele surge como rompimento com o
cinema feito no passado?
Daniel Burman - Fazendo uma
autocrítica em nome de minha
geração, mas pessoal, precisamos
aprender que não inventamos nada. Birri e outros cineastas existiram antes de nós. Recuperamos
um modo de fazer cinema e, como a realidade é diferente, o resultado é diferente. Mas essa reconceitualização já se deu outras
vezes. O oposto seria desmerecer
a história do cinema argentino,
que é bem profunda, com pessoas
que ousaram romper em situações mais difíceis que a de agora.
Martel - Eu não vejo uma ruptura, vejo uma transição, coisa que
não me alegra dizer. Sempre é
mais atraente falar em ruptura.
Folha - O que mudou, então?
Trapero - O que, para mim, é novo é a forma de observação. A história fica em primeiro lugar, não o
diretor. Isso muda muito o ponto
de vista e a encenação em geral,
porque olhar as histórias e os filmes a partir de um lugar que é
quase o do espectador, sem dispor de ferramentas suficientes para construir e criar esse mundo
formalmente, transforma tudo.
Folha - Do ponto de vista temático, que tipo de mudança existe entre o que se faz hoje e o que se fazia
nos anos 80 ou início dos 90?
Trapero - Não sei se é tanto temático. "La Ciénaga", por exemplo, é um filme que Torre Nilson
poderia ter feito, nos anos 50, é sobre uma classe média decadente.
"Mundo Grúa" é sobre um sujeito
que não trabalha. "Pizza, Birra y
Faso" fala sobre o mundo marginal. O que muda é o ponto de vista. Para falar de meu filme: em geral os filmes sobre o desemprego
eram de denúncia, tinham um
discurso militante mais do que cinematográfico. No cinema dos
anos 80, em primeiro lugar vinha
o discurso formal, depois o cinematográfico. Hoje não é assim.
Folha - Por que a utilização constante de não-atores?
Trapero - Por que vou ter de colocar um ator conhecido se há mil
filmes com atores conhecidos de
que não gostei e nos quais os atores não se saíram bem? Isso não
garante que o filme seja melhor.
Perdido por perdido, chamo
quem estou com vontade. Essa
também é uma mudança importante que vem acontecendo, o que
vem em primeiro lugar é o resultado do filme. Se você vai contar a
história de um sujeito anônimo,
não pode colocar um ator de televisão, porque metade da verossimilhança de seu filme se perde.
Folha - Um limite também é uma
forma de liberdade...
Trapero - Exatamente, diante da
impossibilidade de construir determinadas coisas, faça o que você
tiver vontade de fazer, porque a
gente vai se meter num esquema
no qual você mesmo determina
suas limitações. Por isso é importante, para mim, produzir meus
filmes e, com o tempo, passar a
produzir filmes de pessoas que eu
acho interessantes. Acho importante que as regras do filme sejam
estabelecidas pelo próprio filme, e
não pelo mercado.
Folha - Acham que o caos social,
econômico e político que a Argentina atravessa inspira filmes?
Pablo Reyero - Acho que, até uns
anos atrás, a crise poderia ser vista
como produtiva ou geradora, mas
a crise que existe hoje na Argentina é terminal. Acho que está muito mais difícil propor um projeto
novo. Simplesmente olhando a
proporção entre o dólar e o peso,
tudo que diz respeito a insumos
de cinema, filme, produtos químicos, laboratórios... Tudo o que
tenha a ver com cinema ou vídeo,
que é importado, é taxado em dólar, e isso significa que as coisas
vão ficar muito mais difíceis para
os realizadores.
Burman - Pessoalmente, não tenho nenhum desejo de abordar a
realidade social, porque não tenho nada a fazer exceto colocá-la
na câmera e mandá-la a um festival. Nesse sentido, ela me paralisa.
Martel - A percepção do caos é
muito diferente, dependendo do
lugar de onde se olha para ele. Enfrentei o caos devido aos limites
de minha própria educação. Sinto
que pertenço a uma classe média
que ainda luta para manter seus
poucos privilégios. Nunca percebi
a fragilidade de uma educação
que não nos prepara para a história, mas só para o consumo diário. O que difere é que não vejo essa queda com medo, mas com
enorme curiosidade. É claro que o
funcionamento prático da produção se torna mais complexo nessas circunstâncias. Mas o cinema
sempre foi mais visão do mundo
do que facilidades de produção.
Folha - Como vocês reagiram
quando filmes latino-americanos
como "Amores Brutos" e "E Sua
Mãe Também" começam a surgir?
Burman - Talvez eu seja muito
pragmático, mas me parece que o
maior valor que eles têm é que
abrem caminhos enormes. São
referências que fazem com que,
quando se chega com um projeto,
já há todo um trabalho feito por
outro. Por isso o cinema tem algo
de solidário, uma espécie de solidariedade compulsiva. "Mundo
Grúa" abriu portas por todos os
lados. "Amores Brutos" e "E Sua
Mãe Também" mostraram ao
mundo anglo-saxão que esses filmes podem ir além de notas na
imprensa, além dos festivais. Eles
entreabriram a porta do mercado.
Folha - Como vocês reagem aos
movimentos mais estratificados,
como o dinamarquês Dogma 95?
Trapero - Para mim isso é uma
operação de marketing, o Dogma
é marketing, é uma forma de vender seu produto. Não acredito
nisso. Não acredito em regras para fazer cinema, sob aspecto nenhum, nem nas da nouvelle vague, nem nas do neo-realismo italiano, nem nas do Dogma, nem
nas de Hollywood. Cada filme
tem suas próprias regras.
Folha - Do que é feito, nos Estados Unidos, Ásia ou Europa, o que
interessa e o que é odiável?
Burman - O que eu detesto? Um
filme que não me desperte muita
paixão, nem para um lado, nem
para o outro. Estou supercansado
do cinema iraniano, dos meninos
com os globos, que perdem a caixinha... E há um certo tipo de cinema oriental que acho esgotante,
"Millenium Mambo" é exaustivo,
pedi que me devolvessem o dinheiro do ingresso. Uma garota
ouvindo tecno, 20 minutos disso... Gosto muito de [Julio" Medem, de alguns diretores franceses, de coisas isoladas. Não compro tendências, talvez por acreditar que elas sejam enganosas.
Texto Anterior: Entre a ruptura e a tradição Próximo Texto: Alguns cineastas da nova geração Índice
|