São Paulo, quarta-feira, 22 de maio de 2002

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CINEMA

Para Lucrecia Martel, produção argentina cria movimento para "reunir pedaços de uma sociedade fragmentada"

Nova geração quer retomar sua história

DA REDAÇÃO

Leia a seguir a continuação da entrevista com os cineastas Pablo Trapero, Daniel Burman, Lucrecia Martel e Pablo Reyero.
(WALTER SALLES)

Pablo Trapero - Mais importante do que a questão de ser novo ou não, de ser original ou não, é o fato de que estamos vivendo uma etapa de maturidade diferente dentro de uma tradição do cinema argentino. Um movimento é algo que surge independentemente. De repente todos nos demos conta de que fazíamos filmes, éramos amigos, tínhamos uma forma de vida em comum, de que o cinema estava em nossa vida como uma coisa quase musical.

Lucrecia Martel - Por diferentes razões, somos uma geração que sente uma enorme necessidade de referências fortes. Não se deve esquecer que esta geração surgiu depois de uma que foi exterminada nos anos 70. A necessidade de relatar o próximo, de ancorar nossos relatos àquilo que se conhece de modo imediato, de que as interpretações sejam as mais autênticas possíveis -todas essas coisas que se encontram bastante nos novos filmes têm a ver com a necessidade de que a história volte a ser nossa própria história.
Durante décadas, vivemos num país que contou sua história em cima das mentiras mais atrozes. Nossa geração se deu conta de que havia realidades paralelas e aterradoras. Se existe algo que pode marcar essa nova geração, é a necessidade de juntar esses fios paralelos, de reunir os pedaços de uma sociedade fragmentada.

Folha - Quando Truffaut lançou o manifesto contra o cinema clássico francês, houve um rompimento com a geração que o antecedeu. Se há um novo cinema na Argentina, ele surge como rompimento com o cinema feito no passado?
Daniel Burman -
Fazendo uma autocrítica em nome de minha geração, mas pessoal, precisamos aprender que não inventamos nada. Birri e outros cineastas existiram antes de nós. Recuperamos um modo de fazer cinema e, como a realidade é diferente, o resultado é diferente. Mas essa reconceitualização já se deu outras vezes. O oposto seria desmerecer a história do cinema argentino, que é bem profunda, com pessoas que ousaram romper em situações mais difíceis que a de agora.

Martel - Eu não vejo uma ruptura, vejo uma transição, coisa que não me alegra dizer. Sempre é mais atraente falar em ruptura.

Folha - O que mudou, então?
Trapero -
O que, para mim, é novo é a forma de observação. A história fica em primeiro lugar, não o diretor. Isso muda muito o ponto de vista e a encenação em geral, porque olhar as histórias e os filmes a partir de um lugar que é quase o do espectador, sem dispor de ferramentas suficientes para construir e criar esse mundo formalmente, transforma tudo.

Folha - Do ponto de vista temático, que tipo de mudança existe entre o que se faz hoje e o que se fazia nos anos 80 ou início dos 90?
Trapero -
Não sei se é tanto temático. "La Ciénaga", por exemplo, é um filme que Torre Nilson poderia ter feito, nos anos 50, é sobre uma classe média decadente. "Mundo Grúa" é sobre um sujeito que não trabalha. "Pizza, Birra y Faso" fala sobre o mundo marginal. O que muda é o ponto de vista. Para falar de meu filme: em geral os filmes sobre o desemprego eram de denúncia, tinham um discurso militante mais do que cinematográfico. No cinema dos anos 80, em primeiro lugar vinha o discurso formal, depois o cinematográfico. Hoje não é assim.

Folha - Por que a utilização constante de não-atores?
Trapero -
Por que vou ter de colocar um ator conhecido se há mil filmes com atores conhecidos de que não gostei e nos quais os atores não se saíram bem? Isso não garante que o filme seja melhor. Perdido por perdido, chamo quem estou com vontade. Essa também é uma mudança importante que vem acontecendo, o que vem em primeiro lugar é o resultado do filme. Se você vai contar a história de um sujeito anônimo, não pode colocar um ator de televisão, porque metade da verossimilhança de seu filme se perde.

Folha - Um limite também é uma forma de liberdade...
Trapero -
Exatamente, diante da impossibilidade de construir determinadas coisas, faça o que você tiver vontade de fazer, porque a gente vai se meter num esquema no qual você mesmo determina suas limitações. Por isso é importante, para mim, produzir meus filmes e, com o tempo, passar a produzir filmes de pessoas que eu acho interessantes. Acho importante que as regras do filme sejam estabelecidas pelo próprio filme, e não pelo mercado.

Folha - Acham que o caos social, econômico e político que a Argentina atravessa inspira filmes?
Pablo Reyero -
Acho que, até uns anos atrás, a crise poderia ser vista como produtiva ou geradora, mas a crise que existe hoje na Argentina é terminal. Acho que está muito mais difícil propor um projeto novo. Simplesmente olhando a proporção entre o dólar e o peso, tudo que diz respeito a insumos de cinema, filme, produtos químicos, laboratórios... Tudo o que tenha a ver com cinema ou vídeo, que é importado, é taxado em dólar, e isso significa que as coisas vão ficar muito mais difíceis para os realizadores.

Burman - Pessoalmente, não tenho nenhum desejo de abordar a realidade social, porque não tenho nada a fazer exceto colocá-la na câmera e mandá-la a um festival. Nesse sentido, ela me paralisa.

Martel - A percepção do caos é muito diferente, dependendo do lugar de onde se olha para ele. Enfrentei o caos devido aos limites de minha própria educação. Sinto que pertenço a uma classe média que ainda luta para manter seus poucos privilégios. Nunca percebi a fragilidade de uma educação que não nos prepara para a história, mas só para o consumo diário. O que difere é que não vejo essa queda com medo, mas com enorme curiosidade. É claro que o funcionamento prático da produção se torna mais complexo nessas circunstâncias. Mas o cinema sempre foi mais visão do mundo do que facilidades de produção.

Folha - Como vocês reagiram quando filmes latino-americanos como "Amores Brutos" e "E Sua Mãe Também" começam a surgir?
Burman -
Talvez eu seja muito pragmático, mas me parece que o maior valor que eles têm é que abrem caminhos enormes. São referências que fazem com que, quando se chega com um projeto, já há todo um trabalho feito por outro. Por isso o cinema tem algo de solidário, uma espécie de solidariedade compulsiva. "Mundo Grúa" abriu portas por todos os lados. "Amores Brutos" e "E Sua Mãe Também" mostraram ao mundo anglo-saxão que esses filmes podem ir além de notas na imprensa, além dos festivais. Eles entreabriram a porta do mercado.

Folha - Como vocês reagem aos movimentos mais estratificados, como o dinamarquês Dogma 95?
Trapero -
Para mim isso é uma operação de marketing, o Dogma é marketing, é uma forma de vender seu produto. Não acredito nisso. Não acredito em regras para fazer cinema, sob aspecto nenhum, nem nas da nouvelle vague, nem nas do neo-realismo italiano, nem nas do Dogma, nem nas de Hollywood. Cada filme tem suas próprias regras.

Folha - Do que é feito, nos Estados Unidos, Ásia ou Europa, o que interessa e o que é odiável?
Burman -
O que eu detesto? Um filme que não me desperte muita paixão, nem para um lado, nem para o outro. Estou supercansado do cinema iraniano, dos meninos com os globos, que perdem a caixinha... E há um certo tipo de cinema oriental que acho esgotante, "Millenium Mambo" é exaustivo, pedi que me devolvessem o dinheiro do ingresso. Uma garota ouvindo tecno, 20 minutos disso... Gosto muito de [Julio" Medem, de alguns diretores franceses, de coisas isoladas. Não compro tendências, talvez por acreditar que elas sejam enganosas.



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