São Paulo, terça-feira, 22 de maio de 2007

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CECILIA GIANNETTI

Ulrich toca piano


Ulrich toca piano sem se importar com as máquinas de alemães menos educados que ele, que furam Berlim

ULRICH TOCA piano. Mas eu nunca vou saber quem é Ulrich, as notas espaçadas, em busca de alguma coisa que também não sei o que é, e por isso não posso ajudar Ulrich. Estou em Berlim há um mês e vou embora logo quando começo a entender alguma coisa, qualquer coisa.
Pode não ser Ulrich quem toca piano, pode ser alguém que vive com o homem cujo nome está escrito à canetinha preta no identificador acima da campainha de seu apartamento térreo. Pode ser um homem, uma mulher ou Ulrich quem toca o piano. Apenas começo a entender, passados o choque da chegada e as arrumações pelo apartamento que range inteiro.
E agora que já vou mesmo, reparo que me acostumei ao som do piano de Ulrich, e ao do assoalho que é um paquiderme adormecido há 800 anos, e às paredes que datam da criação da Prússia, e ao trem que atravessa a sala em direção ao banheiro entre onze e meia-noite, quando -no mesmo dia em que eu partir, tenho certeza, e deixar o terreno livre- alguns passageiros mais folgados descerão para usar o sanitário, na ausência de quem cuide deste apartamento. A única coisa rápida em Berlim é o S-Bahn.
Ulrich toca piano no térreo, sem se importar com as máquinas de alemães menos educados que ele, que na rua batem contra o asfalto e furam Berlim toda a partir da calçada que encara ofensivamente as janelas do andar térreo, responsáveis pelo estado de permanente reconstrução da cidade de Ulrich.

Despedida
Não sei nem mesmo o sobrenome do pianista, que o identificador acima da campainha oculta numa mancha; provavelmente a chuva correu sobre o hidrocor.
Agora, é me despedir dos lugares. Dos que gosto, com jeito de detrito de guerra, lembranças da Deutsche Demokratische Republik colocando pra fora sua cabeça velha aqui e ali em becos de periferias intocadas pelas reformas, paredes pichadas caindo aos pedaços e tijolos expostos que ameaçam cair sobre a minha cabeça em Treptow, monumentos que às vezes parecem existir em maior quantidade que gente, nos mercados de pulgas bugigangas da Guerra Fria, fardas de soldados que fugiram de seus postos no lado oriental, bicicletas, lama, mato, pipas, carrinhos de bebê cobertos de ferrugem e poeira, e filas sem fim de casacos gastos e sapatos femininos de todas as décadas do século passado. Todo tipo de tralhas que um dia formaram o mundo da gente de Berlim.
Volto a ser o que sou quando volto pra casa: a pessoa que caminha rápido, que não acende um cigarro, que não pára pra uma xícara de café numa mesa da estação do metrô, mesa de madeira gasta de neve, chuva e quase nenhum sol.
Volto a ser não-fumante, e é essa a vantagem. Toda a desvantagem está em tornar a viver como se nada tivesse entendido de Ulrich -as notas espaçadas. Eu devia ter aprendido mais dessa lentidão.


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