|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CECILIA GIANNETTI
Ulrich toca piano
Ulrich toca piano sem se importar com as máquinas de alemães menos educados que ele, que furam Berlim
|
ULRICH TOCA piano. Mas eu
nunca vou saber quem é Ulrich, as notas espaçadas, em
busca de alguma coisa que também
não sei o que é, e por isso não posso
ajudar Ulrich. Estou em Berlim há
um mês e vou embora logo quando
começo a entender alguma coisa,
qualquer coisa.
Pode não ser Ulrich quem toca
piano, pode ser alguém que vive com
o homem cujo nome está escrito à
canetinha preta no identificador
acima da campainha de seu apartamento térreo. Pode ser um homem,
uma mulher ou Ulrich quem toca o
piano. Apenas começo a entender,
passados o choque da chegada e as
arrumações pelo apartamento que
range inteiro.
E agora que já vou mesmo, reparo
que me acostumei ao som do piano
de Ulrich, e ao do assoalho que é um
paquiderme adormecido há 800
anos, e às paredes que datam da criação da Prússia, e ao trem que atravessa a sala em direção ao banheiro
entre onze e meia-noite, quando
-no mesmo dia em que eu partir, tenho certeza, e deixar o terreno livre- alguns passageiros mais folgados descerão para usar o sanitário,
na ausência de quem cuide deste
apartamento. A única coisa rápida
em Berlim é o S-Bahn.
Ulrich toca piano no térreo, sem
se importar com as máquinas de alemães menos educados que ele, que
na rua batem contra o asfalto e furam Berlim toda a partir da calçada
que encara ofensivamente as janelas
do andar térreo, responsáveis pelo
estado de permanente reconstrução
da cidade de Ulrich.
Despedida
Não sei nem mesmo o sobrenome
do pianista, que o identificador acima da campainha oculta numa
mancha; provavelmente a chuva
correu sobre o hidrocor.
Agora, é me despedir dos lugares.
Dos que gosto, com jeito de detrito
de guerra, lembranças da Deutsche
Demokratische Republik colocando pra fora sua cabeça velha aqui e
ali em becos de periferias intocadas
pelas reformas, paredes pichadas
caindo aos pedaços e tijolos expostos que ameaçam cair sobre a minha cabeça em Treptow, monumentos que às vezes parecem existir em maior quantidade que gente,
nos mercados de pulgas bugigangas
da Guerra Fria, fardas de soldados
que fugiram de seus postos no lado
oriental, bicicletas, lama, mato, pipas, carrinhos de bebê cobertos de
ferrugem e poeira, e filas sem fim
de casacos gastos e sapatos femininos de todas as décadas do século
passado. Todo tipo de tralhas que
um dia formaram o mundo da gente de Berlim.
Volto a ser o que sou quando volto pra casa: a pessoa que caminha
rápido, que não acende um cigarro,
que não pára pra uma xícara de café
numa mesa da estação do metrô,
mesa de madeira gasta de neve,
chuva e quase nenhum sol.
Volto a ser não-fumante, e é essa
a vantagem. Toda a desvantagem
está em tornar a viver como se nada
tivesse entendido de Ulrich -as
notas espaçadas. Eu devia ter
aprendido mais dessa lentidão.
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Rodrigo Maranhão exibe seu "Bordado" Índice
|