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BERNARDO CARVALHO
Transparência e opacidade
Ex-aluna de Samuel Beckett lança livro que dá pistas sobre a futura obra do dramaturgo
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SAMUEL BECKETT detestava dar
aulas. Entre 1930 e 1931, lecionou literatura francesa no Trinity College, na Universidade de
Dublin, para classes onde as moças
eram maioria. Ainda não havia escrito romances. Tinha 25 anos.
Em 1977, uma das ex-alunas, Rachel (Dobbin) Burrows, doou seus
cadernos à biblioteca da universidade. Com base nessas anotações de
sala de aula, já utilizadas por outros
pesquisadores da obra do escritor,
Brigitte Le Juez publicou recentemente um pequeno livro: "Beckett
Avant la Lettre" (ed. Grasset).
Os apontamentos de Burrows se
referem ao curso de Introdução à Literatura Moderna, centrado no estudo de Gide e Racine. A escolha de
um escritor clássico do século 17 como objeto de apresentação da literatura moderna não podia ser mais
inusitada e reveladora. Racine era o
dramaturgo preferido de Beckett.
No século 19, os românticos franceses repudiaram o rigor classicista
como uma camisa-de-força, exaltando em contrapartida a liberdade
da dramaturgia shakespeariana, que
permitia escapar aos limites da unidade de tempo, de espaço e de ação.
Shakespeare se tornou o paradigma
absoluto do teatro moderno, criando pela primeira vez "personagens
humanos" (posição defendida por
Harold Bloom), enquanto os de Racine permaneciam confinados no
classicismo do seu tempo, reduzidos
a imagens mentais, a porta-vozes do
autor.
Beckett, por sua vez, via nos personagens de Racine o próprio princípio da modernidade. São personagens complexos e inexplicáveis, que
existem no limite da consciência,
guiados pela "loucura do desejo". A
modernidade do teatro beckettiano
estaria, portanto, ligada a uma tendência neoclassicista. Em Beckett,
como em Racine, há restrição de
tempo, de espaço e de ação. Beckett
dizia a suas alunas que Racine "reduz todas as declarações (dos personagens) a posições cerebrais", permitindo ao espectador ver o que se
passa na cabeça deles, sem com isso
alterar em nada o seu mistério e a
sua complexidade.
É em Balzac, por outro lado, que o
jovem professor identificava personagens reduzidos a marionetes e a
ilustrações estatísticas da concepção de mundo do autor. Contra Balzac, defendia a "impessoalidade" do
realismo de Flaubert, em que os personagens são autônomos, assim como o claro-escuro com que Dostoiévski os mantém "indistintos na
sombra".
O que Beckett elogiava nesses escritores, cujos sucessores seriam Gide e Proust, era uma representação
que incorpora a incoerência, o inexplicável, o inexprimível e o inesperado. "O verdadeiro artista permanece
sempre na semi-inconsciência de si
mesmo, enquanto produz. (...) Ele
não sabe ao certo quem ele é", anota
Rachel Burrows em seus cadernos.
Em Proust, além do mais, como
depois em Joyce, Beckett vai exaltar
a indissociação entre forma e conteúdo: "Aqui, a forma é conteúdo, o
conteúdo é a forma (...). Sua escrita
não é sobre alguma coisa; é a própria
coisa", escreverá sobre "Finnegans
Wake".
A reticência que os escritores ingleses costumavam demonstrar pelo realismo de Flaubert se explica
em parte pela necessidade romântica de um final redentor na tradição
do espírito anglo-saxão. Em Flaubert, só há desolação. Beckett ensinava a suas alunas que Flaubert era
o verdadeiro precursor do romance
moderno, e não Balzac. E com isso
anunciava a sua própria literatura.
Em todas as suas posições como
professor, entretanto, o que sobressai é a defesa da opacidade contra a
transparência, uma idéia fundamental na obra por vir: "não podemos conhecer e não podemos ser conhecidos".
A transparência é a afirmação gloriosa da velha e palatável separação
entre forma e conteúdo: a crença de
que boa literatura é a melhor forma
de contar uma bela história. Com a
transparência imposta como modelo literário absoluto pelo mercado
anglo-saxão (hoje, o único que realmente conta), voltam à baila juízos
de valor convencionais e antiquados
como "fulano escreve muito bem",
"consegue descrever situações com
grande maestria" etc. A melhor forma volta a ser veículo transparente
de emoções belas e fortes. Voltam a
imperar as longas descrições em terceira pessoa e os personagens psicológicos, que tocam a alma do leitor.
São esses os critérios hegemônicos
de avaliação da literatura hoje. Combinados com elementos multiculturalistas: representação de grupos sociais divididos por raça, gênero etc.,
que vendem a ilusão redentora de
que pelo menos podemos conhecer
o outro num mundo de injustiças e
desigualdades insuperáveis.
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