São Paulo, terça-feira, 22 de maio de 2007

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BERNARDO CARVALHO

Transparência e opacidade


Ex-aluna de Samuel Beckett lança livro que dá pistas sobre a futura obra do dramaturgo

SAMUEL BECKETT detestava dar aulas. Entre 1930 e 1931, lecionou literatura francesa no Trinity College, na Universidade de Dublin, para classes onde as moças eram maioria. Ainda não havia escrito romances. Tinha 25 anos.
Em 1977, uma das ex-alunas, Rachel (Dobbin) Burrows, doou seus cadernos à biblioteca da universidade. Com base nessas anotações de sala de aula, já utilizadas por outros pesquisadores da obra do escritor, Brigitte Le Juez publicou recentemente um pequeno livro: "Beckett Avant la Lettre" (ed. Grasset).
Os apontamentos de Burrows se referem ao curso de Introdução à Literatura Moderna, centrado no estudo de Gide e Racine. A escolha de um escritor clássico do século 17 como objeto de apresentação da literatura moderna não podia ser mais inusitada e reveladora. Racine era o dramaturgo preferido de Beckett.
No século 19, os românticos franceses repudiaram o rigor classicista como uma camisa-de-força, exaltando em contrapartida a liberdade da dramaturgia shakespeariana, que permitia escapar aos limites da unidade de tempo, de espaço e de ação. Shakespeare se tornou o paradigma absoluto do teatro moderno, criando pela primeira vez "personagens humanos" (posição defendida por Harold Bloom), enquanto os de Racine permaneciam confinados no classicismo do seu tempo, reduzidos a imagens mentais, a porta-vozes do autor.
Beckett, por sua vez, via nos personagens de Racine o próprio princípio da modernidade. São personagens complexos e inexplicáveis, que existem no limite da consciência, guiados pela "loucura do desejo". A modernidade do teatro beckettiano estaria, portanto, ligada a uma tendência neoclassicista. Em Beckett, como em Racine, há restrição de tempo, de espaço e de ação. Beckett dizia a suas alunas que Racine "reduz todas as declarações (dos personagens) a posições cerebrais", permitindo ao espectador ver o que se passa na cabeça deles, sem com isso alterar em nada o seu mistério e a sua complexidade.
É em Balzac, por outro lado, que o jovem professor identificava personagens reduzidos a marionetes e a ilustrações estatísticas da concepção de mundo do autor. Contra Balzac, defendia a "impessoalidade" do realismo de Flaubert, em que os personagens são autônomos, assim como o claro-escuro com que Dostoiévski os mantém "indistintos na sombra".
O que Beckett elogiava nesses escritores, cujos sucessores seriam Gide e Proust, era uma representação que incorpora a incoerência, o inexplicável, o inexprimível e o inesperado. "O verdadeiro artista permanece sempre na semi-inconsciência de si mesmo, enquanto produz. (...) Ele não sabe ao certo quem ele é", anota Rachel Burrows em seus cadernos.
Em Proust, além do mais, como depois em Joyce, Beckett vai exaltar a indissociação entre forma e conteúdo: "Aqui, a forma é conteúdo, o conteúdo é a forma (...). Sua escrita não é sobre alguma coisa; é a própria coisa", escreverá sobre "Finnegans Wake".
A reticência que os escritores ingleses costumavam demonstrar pelo realismo de Flaubert se explica em parte pela necessidade romântica de um final redentor na tradição do espírito anglo-saxão. Em Flaubert, só há desolação. Beckett ensinava a suas alunas que Flaubert era o verdadeiro precursor do romance moderno, e não Balzac. E com isso anunciava a sua própria literatura.
Em todas as suas posições como professor, entretanto, o que sobressai é a defesa da opacidade contra a transparência, uma idéia fundamental na obra por vir: "não podemos conhecer e não podemos ser conhecidos".
A transparência é a afirmação gloriosa da velha e palatável separação entre forma e conteúdo: a crença de que boa literatura é a melhor forma de contar uma bela história. Com a transparência imposta como modelo literário absoluto pelo mercado anglo-saxão (hoje, o único que realmente conta), voltam à baila juízos de valor convencionais e antiquados como "fulano escreve muito bem", "consegue descrever situações com grande maestria" etc. A melhor forma volta a ser veículo transparente de emoções belas e fortes. Voltam a imperar as longas descrições em terceira pessoa e os personagens psicológicos, que tocam a alma do leitor.
São esses os critérios hegemônicos de avaliação da literatura hoje. Combinados com elementos multiculturalistas: representação de grupos sociais divididos por raça, gênero etc., que vendem a ilusão redentora de que pelo menos podemos conhecer o outro num mundo de injustiças e desigualdades insuperáveis.


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