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CONTARDO CALLIGARIS
Sábado no Sesc
O fotojornalismo nos força a descobrir uma densidade do instante que não queremos ver
NO SÁBADO passado, estive no
Sesc Pompéia, em São Paulo,
para ver a exposição de fotojornalismo da World Press Photo
(até 15 de junho). A cada ano, essa
organização atribui prêmios às melhores imagens entre as que são propostas por profissionais do mundo
inteiro. Se você está longe de São
Paulo, entre no site www.worldpressphoto.nl e clique em "Winners gallery 2008" (óbvio, a tela do
computador não vale as imagens
impressas).
A foto que ganhou o concurso
deste ano é de Tim Hetherington,
para "Vanity Fair". Representa um
soldado dos Estados Unidos, numa
trincheira, no Afeganistão. Ele retirou seu capacete e leva a mão direita para a testa, num gesto mais de
exaustão que de desespero. A mão
levantada tapa seu olho direito. O
soldado não está nem ferido nem
morto; não há sangue, apenas desolação. A cena poderia resumir qualquer guerra. Um olho atônito se
abre no meio de um fundo monocrômico, em que se misturam a terra, o uniforme e os panos de camuflagem pendurados atrás do soldado: é a cor de uma angústia surda e
talvez da morte.
Será que Hetherington, na hora
de fotografar, viu o que eu enxergo
no resultado? A resposta não é simples. O processo fotográfico (do
momento em que alguém enquadra e focaliza até o trabalho de Photoshop) inventa ou aumenta a riqueza narrativa do momento. Mas,
antes disso, o olhar do fotógrafo deve ter reconhecido a qualidade especial do instante.
Entre os livros que ensinam a fotografar, gosto, por exemplo, do velho "Guia Completo de Fotografia",
de J. Hedgecoe (Martins Fontes), e
da "Introdução à Fotografia Digital", de Tom Ang (DK Civilização).
Essas obras nos explicam como
conferir a máxima densidade ao
instante fotografado: resta que, para fotografar, é preciso, primeiro,
saber e, sobretudo, querer enxergar a densidade do instante.
Muitos anos atrás, no meio de
uma viagem, não consegui fotografar um momento de extrema miséria e dor (em Varanasi, Índia, um
mendigo queimava sua própria ferida aberta com um pires de ferro
que ele esquentava no fogo). Aquela incapacidade fez com que abandonasse meus planos de ser fotógrafo. Na época, consolei-me pensando que não conseguira fotografar pela vergonha de eu me tornar
assim "apenas" um espectador da
miséria ou, então, por eu não querer interpor a câmera entre a dor
do mendigo e minha compaixão.
Visitando a exposição do Sesc,
pensei outra coisa: o fotojornalismo descobre e revela intensidades
que nem sempre queremos enxergar. Talvez eu tenha desistido de
fotografar não para poder me aproximar e ver melhor, mas, ao contrário, para não ver ou para ver menos.
No mesmo sentido, quando somos
chocados pelas imagens nas primeiras páginas dos jornais, é porque nos indignamos contra "o sensacionalismo", mas talvez seja também porque resistimos contra o
poder da fotografia, sua capacidade
de nos fazer enxergar, no que contemplamos, algo que talvez preferíssemos não ver.
Saído da exposição, sentei ao sol
tímido do outono. Logo, visitei outra mostra, "Vida Louca, Vida Intensa, Uma Viagem pela Contracultura" (são cartazes, capas de discos e filmes dos anos 60 ou sobre
aquela época), e me diverti com o
cardápio de livros (sobre o mesmo
tema) que podem ser folheados na
mesa do café.
No galpão central do Sesc, havia
pessoas lendo revistas, outras jogando xadrez e dois homens "sonecando" numa poltrona. No galpão
lateral, o ateliê de gravura estava
em plena atividade, assim como o
de arte e costura. Circulavam pelo
conjunto famílias, crianças e idosos. Uma boa fotografia diria melhor, sem dúvida, a sensação de paz
e de civilidade que estava no ar.
Não sei o que será do projeto de
lei que planeja retirar uma boa parte da verba do Sesc para usá-la para
cursos técnicos profissionalizantes. Claro, receio que o dinheiro suma no triângulo das Bermudas do
Planalto Central. E estaria a fim de
levantar o estandarte da cultura
contra as necessidades da produtividade e do emprego. Mas seria cair
numa armadilha. Seria aceitar a
possibilidade de uma alternativa
entre as exigências da racionalidade e as razões concretas de nossa
vida: qualquer troca, nesse caso, é
insensata, como se decidíssemos
que, para produzir melhor, seria
preciso viver pior. Então, produzir
para quê?
Ora, aquela tarde de sábado no
Sesc foi um pequeno exemplo do
que é viver bem. E, certamente, não
só para mim.
ccalligari@uol.com.br
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