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CONTARDO CALLIGARIS
Ser vítima é bom e explica tudo
O barão de Munchausen ficou famoso por sua férvida
imaginação. Ele exagerava e inventava ao contar suas proezas.
De maneira não muito apropriada, seu nome foi escolhido
para designar uma síndrome na
qual o sujeito produz intencionalmente sintomas para merecer
atenção, carinho e cuidados médicos -pouco importa que isso
implique investigações diagnósticas pesadas ou intervenções cirúrgicas. Estes "transtornos fictícios",
como são chamados, nada têm a
ver com as simulações para obter
vantagens materiais (como compensações por invalidez). Também não devem ser confundidos
com as preocupações do hipocondríaco, que se imagina ou presume doente. A síndrome de Munchausen se identifica pela motivação: o sujeito quer ser reconhecido
e tratado como alguém que sofre.
Os pacientes-Munchausen chegam a extremos para produzir
doenças dignas de interesse e
compaixão. Desde automutilações até injeções de matérias fecais para gerar misteriosas infecções localizadas.
Existe também a síndrome de
Munchausen por procuração.
Neste caso, um dos pais (geralmente a mãe) produz uma doença em seu rebento para receber
-por criança interposta- simpatia e comiseração.
Um estudo na revista "Pediatrics" de junho monitorou casos
suspeitos recorrendo a câmeras
escondidas em quartos de hospital. Apareceu um desfile desconcertante: mães acrescentando sua
própria urina à intravenosa de
seus nenês, outras se forçando a
vomitar para atribuir o vômito
ao bebê etc.
Há quem afirme que 1% das
hospitalizações nos países do Primeiro Mundo poderiam ser Munchausen. Também a síndrome seria mais frequente nos países desenvolvidos.
De fato, esta curiosa figura patológica é filha de nossa cultura.
As idéias cristãs que estão na origem do espírito moderno promovem a esperança de que as vítimas serão amadas e de que muito
será perdoado a quem muito sofreu. Ser vítima deve ser bom.
Mas há algo além disso: nós,
modernos, não confiamos nas virtudes do berço. Damos mais importância à experiência. Para
nós, as pessoas valem segundo a
qualidade e a intensidade de suas
vidas. Por isso a banalidade do
cotidiano é nossa inimiga permanente, pois imaginamos que nosso valor dependa do valor de nossas experiências. De fato, experiências excepcionais (viver na
Antártida, atravessar um furacão, combater a Máfia) dão destaque decisivo a uma vida.
Ora, como o romantismo descobriu logo, o patético é uma forma
simples e acessível de excepcionalidade. Sofrer e ser vítima pode ser
incômodo, mas torna a vítima diferente e facilmente heróica.
Melhor ainda, numa cultura na
qual é fácil e rentável contar vantagens, o sofrimento carrega consigo uma aura de autenticidade.
Qualquer um pode contar que
circunavegou a Terra num balão,
mas quem se atreveria a mentir
declarando: "Estou com câncer"?
Pois é, o Munchausen se atreve.
Ele não é o único. Fazer-se de
vítima é um esporte cultural induzido pela (mórbida) sedução
que a figura da vítima exerce sobre nós.
Sandro do Nascimento, o assaltante do ônibus 174, para que
suas ameaças fossem escutadas,
não proclamou: "Cuidado, que
sou sanguinário!". Ele disse (segundo "O Globo"): "Meu pai
morreu de tiro. Perdi um irmãozinho na Candelária. Arrancaram a cabeça de minha mãe
quando eu era pequeno. Eu sou
maluco e não estou para bobeiras". Ou seja, ele é de verdade, deve ser levado a sério porque sofreu.
Como, ao que parece, ninguém
arrancou a cabeça da mãe, o assaltante -como um paciente-Munchausen- inventou e elaborou para fazer valer seu estatuto
de vítima. A coisa funcionou: a
estudante Luana, que estava entre os reféns, ameaçada de morte
durante horas, achou bom dizer
para Sandro que, na verdade, a
maior vítima era ele, o próprio assaltante. Quem sabe esta observação tenha salvo a vida da jovem,
pois talvez fosse tudo o que Sandro quisesse ouvir.
Mas não deixa de ser uma estranha inversão.
Na mídia desta semana, a
transformação de Sandro em vítima é tema dominante. O assaltante se tornou o "sobrevivente
da Candelária".
Sandro foi vítima dos policiais
que o levaram preso. Também ele
teve uma infância dolorosa. Mas,
enquanto assaltante, ele não foi
vítima coisa nenhuma. As vítimas dessa história são Geisa Firmo Gonçalves e os outros passageiros.
Ora, acontece que preferimos
explicar (justificar seria demais,
não é?) seu comportamento de algoz por ele ter sofrido no passado.
Aparece assim mais uma função
de nosso "vitimismo": ele satisfaz
nossa ingenuidade voluntária.
Graças a ele, podemos evitar ter
de reconhecer desejos incômodos
e nojentos. Pois o mal seria apenas uma reação (compreensível,
então, não é?) a traumas e dores
-uma espécie de vingança das
vítimas.
Quem foi bem tratado será feliz
e ordeiro, quem foi maltratado
sairá errado e assaltante. Você
acredita que, se fôssemos um país
rico, se os pais reconhecessem seus
filhos e se as mães pudessem cuidar das crianças, seríamos também uma sociedade de pessoas
boas e de boas pessoas? Bom, não
vamos ficar ricos tão cedo. Mas, se
acontecer, prepare-se para uma
decepção, pois não é assim.
E-mail - ccalligari@uol.com.br
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