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CARLOS HEITOR CONY
As adaptações dos clássicos e a voz do senhor
Nos meios acadêmicos, e
talvez em outros, questiona-se a oportunidade e até mesmo a
honestidade das adaptações de
clássicos para o público dito ""infanto-juvenil", que inclui não
apenas os adolescentes mas adultos que, por isso ou aquilo, não
têm tempo ou vontade para encarar a leitura dos originais.
Há editoras que se especializam
nessas adaptações, e há professores que condenam este abuso,
considerando-o pastiche ou plágio, além da gravíssima falta de
respeito contra a cultura e a arte.
Antes de mais nada, assumo a
autoria de diversas adaptações
que estão no mercado, lançadas
pela Ediouro, e, mais recentemente, pela Scipione. Até bem pouco
tempo, ditas adaptações eram de
clássicos estrangeiros. Agora são
clássicos em vernáculo adaptados
para o público alvo, que é exatamente o escolar. Crime? Plágio?
Falta de vergonha das editoras e
dos autores das adaptações?
Historiando o assunto. Charles
Lamb fez a versão em prosa das
peças de Shakespeare. Para o jovem de fala inglesa, o primeiro
contato com os textos mais sagrados da literatura teatral foi feito
nessas adaptações, hoje consideradas igualmente clássicas. Em
nada prejudicaram o valor, o
conteúdo e a forma da obra shakespeareana. Pelo contrário, valorizaram-na, pois habituam o
estudante, desde cedo, a conhecer
os dramas e comédias que integram a prateleira mais nobre da
literatura universal.
""O Capital", de Karl Marx, é
uma obra complexa, de acesso limitado a poucos. Foi divulgada, e
ainda o é, por meio de diversas
adaptações, sendo a mais popular
a de Carlos Caffiero.
Monteiro Lobato foi o nosso
pioneiro em adaptar clássicos.
Meu primeiro contato com ""D.
Quixote" e ""As Viagens de Gulliver", duas obras fundamentais
em minha formação humana e literária, foram seus textos, até hoje republicados.
Coisa de cinco ou seis anos,
num vestibular de faculdade,
caiu um texto do cantor Tiririca
na prova de português. Além do
mau gosto, o texto tinha conotação racista. Houve grita nos jornais e nas academias. Os responsáveis pela escolha da obra-prima
do Tiririca alegaram que os alunos consideram impenetráveis os
nossos clássicos. Foram citados,
entre outros, José de Alencar, Machado de Assis, Coelho Neto e
Raul Pompéia.
A Scipione, que já havia lançado uma adaptação de ""Os Lusíadas" feita por Rubem Braga e Edson Braga, encomendou-me um
texto atualizado de ""O Ateneu".
Antes de aceitar, reli Raul Pompéia. Uma obra-prima indiscutível, avançada no tempo, com o
personagem mais bem delineado
de nossa literatura, que é o professor Aristarco, dono, algoz e vítima do ateneu.
Escrito em 1889, a linguagem e
a técnica narrativa é de difícil penetração para o jovem habituado
aos vocábulos e ritmos audiovisuais do cinema, da TV, do rádio
e até mesmo da história em quadrinhos, que, à falta de som, cria
onomatopéias que significam soco, tiro, calça rasgada, desabamento, explosão, beijo, ações repetidas como ""esfrega, esfrega, esfrega", ou ""dobra, dobra, dobra".
Um exemplo. Em ""O Ateneu", o
novato vai tomar banho de tanque (não havia piscina com água
tratada, havia tanques com
águas barrentas). Um veterano
vem por trás e derruba o novato
num caldo inesperado. Além do
susto, o garoto bebe aquela água
suja. Quando volta à superfície,
reclama do veterano que o derrubou, chamando-o de perverso.
Um jovem de hoje que usasse esta palavra em tal situação seria
evidentemente um efeminado. Ao
chegar neste trecho, pensei em
trocar o ""perverso" por um ""filho
da puta", que seria mais realista.
Tendo em vista o público alvo,
usei o ""sacana". Creio que Raul
Pompéia teria feito o mesmo, se
escrevesse hoje a sua obra-prima.
Outro exemplos, não pessoais.
Transcreverei um texto bíblico da
tradução clássica de João Ferreira
d'Almeida, a mais conhecida de
todas, publicada pela American
Bible Society, que durante anos
foi praticamente a única no mercado da língua portuguesa: ""E
disse Deus: haja uma expansão
no meio das águas e haja separação entre águas e águas. E fez
Deus a expansão (Gênesis I, 6)".
Agora, a tradução publicada
pela Sociedade Bíblica do Brasil,
versão de 1973 e republicada sucessivamente a partir de então:
""Então Deus disse: Que haja no
meio da água uma divisão para
separá-la em duas partes. E assim
aconteceu".
Para citar o Novo Testamento,
temos o exemplo mais notável no
""Padre Nosso", que virou ""Pai
Nosso". O versículo ""perdoai as
nossas dívidas assim como perdoamos os nosso devedores" hoje
transformou-se em ""perdoai as
nossas ofensas assim como perdoamos aqueles que nos têm
ofendido".
E há ainda a famosa citação de
que "é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do
que um rico entrar no reino do
céu". Camelo, em português arcaico, era um tipo de corda grossa, creio que não mais existente
no mercado.
Pergunta final: até que ponto as
modificações aviltaram o sentido
espiritual e literário do Livro dos
Livros?
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