São Paulo, sexta-feira, 22 de junho de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

As adaptações dos clássicos e a voz do senhor

Nos meios acadêmicos, e talvez em outros, questiona-se a oportunidade e até mesmo a honestidade das adaptações de clássicos para o público dito ""infanto-juvenil", que inclui não apenas os adolescentes mas adultos que, por isso ou aquilo, não têm tempo ou vontade para encarar a leitura dos originais.
Há editoras que se especializam nessas adaptações, e há professores que condenam este abuso, considerando-o pastiche ou plágio, além da gravíssima falta de respeito contra a cultura e a arte.
Antes de mais nada, assumo a autoria de diversas adaptações que estão no mercado, lançadas pela Ediouro, e, mais recentemente, pela Scipione. Até bem pouco tempo, ditas adaptações eram de clássicos estrangeiros. Agora são clássicos em vernáculo adaptados para o público alvo, que é exatamente o escolar. Crime? Plágio? Falta de vergonha das editoras e dos autores das adaptações?
Historiando o assunto. Charles Lamb fez a versão em prosa das peças de Shakespeare. Para o jovem de fala inglesa, o primeiro contato com os textos mais sagrados da literatura teatral foi feito nessas adaptações, hoje consideradas igualmente clássicas. Em nada prejudicaram o valor, o conteúdo e a forma da obra shakespeareana. Pelo contrário, valorizaram-na, pois habituam o estudante, desde cedo, a conhecer os dramas e comédias que integram a prateleira mais nobre da literatura universal.
""O Capital", de Karl Marx, é uma obra complexa, de acesso limitado a poucos. Foi divulgada, e ainda o é, por meio de diversas adaptações, sendo a mais popular a de Carlos Caffiero.
Monteiro Lobato foi o nosso pioneiro em adaptar clássicos. Meu primeiro contato com ""D. Quixote" e ""As Viagens de Gulliver", duas obras fundamentais em minha formação humana e literária, foram seus textos, até hoje republicados.
Coisa de cinco ou seis anos, num vestibular de faculdade, caiu um texto do cantor Tiririca na prova de português. Além do mau gosto, o texto tinha conotação racista. Houve grita nos jornais e nas academias. Os responsáveis pela escolha da obra-prima do Tiririca alegaram que os alunos consideram impenetráveis os nossos clássicos. Foram citados, entre outros, José de Alencar, Machado de Assis, Coelho Neto e Raul Pompéia.
A Scipione, que já havia lançado uma adaptação de ""Os Lusíadas" feita por Rubem Braga e Edson Braga, encomendou-me um texto atualizado de ""O Ateneu". Antes de aceitar, reli Raul Pompéia. Uma obra-prima indiscutível, avançada no tempo, com o personagem mais bem delineado de nossa literatura, que é o professor Aristarco, dono, algoz e vítima do ateneu.
Escrito em 1889, a linguagem e a técnica narrativa é de difícil penetração para o jovem habituado aos vocábulos e ritmos audiovisuais do cinema, da TV, do rádio e até mesmo da história em quadrinhos, que, à falta de som, cria onomatopéias que significam soco, tiro, calça rasgada, desabamento, explosão, beijo, ações repetidas como ""esfrega, esfrega, esfrega", ou ""dobra, dobra, dobra".
Um exemplo. Em ""O Ateneu", o novato vai tomar banho de tanque (não havia piscina com água tratada, havia tanques com águas barrentas). Um veterano vem por trás e derruba o novato num caldo inesperado. Além do susto, o garoto bebe aquela água suja. Quando volta à superfície, reclama do veterano que o derrubou, chamando-o de perverso.
Um jovem de hoje que usasse esta palavra em tal situação seria evidentemente um efeminado. Ao chegar neste trecho, pensei em trocar o ""perverso" por um ""filho da puta", que seria mais realista. Tendo em vista o público alvo, usei o ""sacana". Creio que Raul Pompéia teria feito o mesmo, se escrevesse hoje a sua obra-prima.
Outro exemplos, não pessoais. Transcreverei um texto bíblico da tradução clássica de João Ferreira d'Almeida, a mais conhecida de todas, publicada pela American Bible Society, que durante anos foi praticamente a única no mercado da língua portuguesa: ""E disse Deus: haja uma expansão no meio das águas e haja separação entre águas e águas. E fez Deus a expansão (Gênesis I, 6)".
Agora, a tradução publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil, versão de 1973 e republicada sucessivamente a partir de então: ""Então Deus disse: Que haja no meio da água uma divisão para separá-la em duas partes. E assim aconteceu".
Para citar o Novo Testamento, temos o exemplo mais notável no ""Padre Nosso", que virou ""Pai Nosso". O versículo ""perdoai as nossas dívidas assim como perdoamos os nosso devedores" hoje transformou-se em ""perdoai as nossas ofensas assim como perdoamos aqueles que nos têm ofendido".
E há ainda a famosa citação de que "é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino do céu". Camelo, em português arcaico, era um tipo de corda grossa, creio que não mais existente no mercado.
Pergunta final: até que ponto as modificações aviltaram o sentido espiritual e literário do Livro dos Livros?


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