São Paulo, terça-feira, 22 de junho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LITERATURA

História "juvenil" de rapaz "autista" que investiga morte de cão, agora no Brasil, foi "o" livro de 2003 na Inglaterra

"Estranho caso" da ficção inglesa está entre nós

Dave Caulkin/Associated Press
O escritor Mark Haddon e seu premiado "O Estranho Caso..." em sua casa, em Oxford, Inglaterra


CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Você pode nunca ter ouvido falar sobre a história de um garoto com problemas mentais e suas investigações sobre a morte de um cachorro da vizinha, mas pode anotar em qualquer caderninho, que não esteja disposto a perder nos próximos anos, duas coisas: "O Estranho Caso do Cachorro Morto" e Mark Haddon.
Juntos, o romance e seu autor se transformaram no maior fenômeno literário-editorial da Inglaterra na safra 2003.
Escritor e ilustrador de livros infantis de pouca visibilidade, Haddon fez sua primeira obra "infanto-juvenil" (as aspas depois se explica) conquistar a tríplice coroa: atingiu o topo das vendas no Reino Unido, com 500 mil cópias, faturou o tradicional Prêmio Whitbread de melhor livro do ano, concorrendo com tudo o que foi publicado no país em qualquer gênero em 2003, e colecionou todos os adjetivos no espectro de "brilhante" a "genial" das principais publicações da língua inglesa e de autores como Ian McEwan.
Vendido para 40 países e para uma 41ª nação chamada Hollywood, o livro chega também, sem legendas, às prateleiras brasileiras, em lançamento recente da editora Record.
Atualmente fazendo seu segundo romance, com "12 mil palavras" já gravadas no seu computador, em Oxford, Inglaterra, Haddon, 42, saiu temporariamente de sua reclusão (ele recusou viajar aos EUA agora, onde seu livro tem lançamentos -e ocupa o terceiro posto no "top ten" da "Publishers Weekly") e falou por telefone com a Folha. Leia a seguir trechos da entrevista.
 

Folha - Você já disse que em geral escrever para crianças é uma atividade tratada como algo tão estranho como "viver de fazer aquarelas de gatos". Por que existe preconceito com o autor infantil?
Mark Haddon -
Assim como as crianças são tratadas como inferiores em relação aos adultos, os autores para crianças são colocados em um patamar abaixo. Os livros são mais simples, curtos e, pior, qualquer um acha que pode escrevê-los -e não pode. Acho que meu livro faz parte de um cenário de mudança cultural na Inglaterra nos últimos anos, que fez da literatura para crianças e adolescentes algo mais valorizado.

Folha - Foi a mágica de Potter?
Haddon -
Potter fez os editores notarem que podiam fazer muito dinheiro vendendo livros que fossem tanto para adultos quanto para crianças, mas o escritor que realmente mudou o status desses autores foi Philip Pullman [que tem obras lançadas no Brasil pela Objetiva]. Devemos muito a ele. A diferença é que se você é adulto e lê Potter você vai se divertir fingindo que tem 12 anos. Mas nos livros de Pullman você pode se divertir e continuar adulto.

Folha - Potter foi o primeiro livro de centenas de milhares de crianças. Mas elas cresceram e provavelmente foram atrás de algo mais "crescidinho". Você imagina que esse contingente possa explicar as vendas fenomenais de seu livro?
Haddon -
Não acho que exista uma ligação direta com o fenômeno Potter, mesmo porque uma das maiores vendas foi da edição adulta [o livro teve na Inglaterra, de modo inédito, uma edição para crianças e outra para adultos]. Existe um debate muito acirrado aqui sobre os hábitos de leitura dos jovens pós-Potter. O fenômeno teria estimulado que as crianças lessem mais ou que lessem mais Potter? Não sei, mas acho impressionante que crianças que não gostavam de ler enfrentem volumes de 500 páginas e sei, por pesquisas dos últimos anos, que as crianças passaram a ler muito mais. Mas não busquei esse público. Escrevi para os adultos.

Folha - Em uma entrevista você disse que tinha ambições de escrever um grande romance pós-moderno. Como vão esses planos?
Haddon -
Estão parados, mas é gozado que acho o próprio "Estranho Caso" um tanto "pós-moderno". É muito fácil de ler, mas se você olha o livro objetivamente ele é um bocado estranho. Tem pequenos ensaios, contas, ilustrações, de algum modo sinais dos pós-modernistas que gosto de ler.

Folha -Você fará outros livros "estrelados" por Christopher Boone?
Haddon -
Não. Como minha avó dizia, você deve deixar a mesa sentindo-se levemente faminto.

Folha - Mas você esperava que o livro fosse ser o banquete que foi?
Haddon -
Foi um choque brutal. Esperava vender muito pouco.

Folha - Por que o sucesso?
Haddon -
Lendo cartas dos fãs cheguei a algumas conclusões. Embora Christopher seja quase um alien, a história tem uma essência universal: alguém que leva a vida seguindo um pequeno número de regras e como essa pessoa reage quando o caos vira sua vida de ponta-cabeça. Qualquer um vive isso, seja por ser demitido, se divorciar, perder alguém.
O segundo motivo é que, por ser contada por alguém que não compreende as emoções, a história fica com muitos espaços em branco para que o leitor possa encaixar suas próprias histórias.
Com isso, uns acharam o livro leve e divertido, outros o acharam deprimente. As duas leituras fazem sentido. A vida é assim.


Texto Anterior: Fim de semana: Humor de Thais Losso é destaque; marcas apostam na moda urbana
Próximo Texto: Turma de Harry Potter levará história ao telão
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.