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São Paulo, terça-feira, 22 de julho de 2003

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BERNARDO CARVALHO

A encenação da encenação

A fotografia contemporânea substituiu por uma realidade fabricada o famoso "momento decisivo" que celebrizou Henri Cartier-Bresson e que tanto marcou o ponto de vista dos fotógrafos modernos, guiados pela idéia de que tudo dependia da sua presença de espírito para captar o instante exato em que a verdade se revelava à objetiva.
A fotografia hoje exposta em museus e galerias já não revela, mas encena. Dos auto-retratos de Cindy Sherman às panorâmicas de Andreas Gursky, passando pelas alegorias de Jeff Wall, os exemplos são inúmeros.
Essas imagens também costumam fazer alusões narrativas, dar a idéia de que há alguma coisa para contar, mas que não deve ser dita, sob a pena de mostrar toda a sua banalidade e o seu vazio. Fazem uma mistificação do cotidiano (Nan Goldin talvez seja o exemplo mais evidente). A criação da mística e do mistério depende da encenação instantânea do não-dito.
Dentro desse cenário, o americano Philip-Lorca diCorcia tem um papel especialmente original e traiçoeiro. Desde o final dos anos 70, ele vem afinando um trabalho rigoroso de luz, se apropriando de técnicas de iluminação da publicidade e do cinema para envolver numa atmosfera de terror e irrealidade as cenas mais banais do cotidiano.
Suas fotos expostas na galeria Whitechapel, em Londres, até 24 de agosto, fazem parte de duas séries. A primeira, menos ambígua (e, nesse sentido, menos extraordinária), chama-se "A Storybook Life" e reúne 70 imagens feitas ao longo de duas décadas. São, nas palavras do fotógrafo, o que de mais próximo ele já fez de um diário íntimo, embora quase tudo seja forjado, a começar pela suposta continuidade. São simulacros de situações familiares "naturais", envolvidas numa aura de assombro.
A sequência começa com uma imagem do pai do fotógrafo, vivo, deitado numa cama, dormindo diante de um televisor ligado, e termina com a imagem do pai morto, deitado num caixão aberto, exposto na sala vazia de uma casa funerária.
"A fotografia é uma ficção que contém a verdade", declarou o fotógrafo recentemente. A ironia e a raiva que DiCorcia destila contra a imagem que pretende captar a realidade se manifestam na ambiguidade desse corpo deitado (vivo e morto) que o espectador só consegue distinguir como vivo ou morto, a despeito de ele estar realmente vivo ou morto, pelo que o cerca, pela encenação, pelo ambiente e pelos elementos de cena: o quarto ou o velório. O pai podia muito bem estar morto na cama diante da TV ligada e vivo dentro do caixão no velório vazio. E é nessa súbita consciência por parte do espectador que se revela o que há de mais sinistro e misterioso na realidade fotografada.
O grande salto do trabalho de DiCorcia, entretanto, veio com as fotos de rua. É o que o diferencia da encenação da realidade tão característica da sua geração. A outra série exposta na Whitechapel ("Two Hours") é exemplar. Reúne fotos tiradas de um mesmo ponto de vista, numa esquina de Havana, ao longo de duas horas, sem o conhecimento prévio das pessoas fotografadas. A iluminação torna essas cenas tão artificiais quanto retratos posados, embora sua matéria-prima seja o imprevisto e o acaso.
Anteriormente, DiCorcia já tinha pagado a mendigos de Los Angeles para posarem como modelos em fotos que também forjavam uma naturalidade perturbadora, sempre por meio da luz. O mais extraordinário, porém, só aconteceu quando o fotógrafo passou a retratar anônimos, em Tóquio, em Nova York, em Calcutá e na Cidade do México, a despeito do conhecimento ou consentimento deles. A ambiguidade foi levada ao cúmulo, as imagens passaram a encenar a encenação.
Nessas fotos, DiCorcia dá a impressão de estar fotografando uma realidade ficcional, quando no fundo a "encenação" se reduz a recriar o "momento decisivo", sob uma aura de artificialidade, por meio da luz. A iluminação dá ao acaso uma aparência de ficção. É essa a sua maior perversão, em nome de uma ambiguidade sinistra.
Ao captar o instante, Cartier-Bresson exaltava o homem, o artista como revelador e criador, uma espécie de demiurgo moderno. O fotógrafo revelava, por uma presença de espírito genial, a vida que os olhos comuns não viam. Ele capturava o acaso. DiCorcia, ao contrário, encena uma espécie de falsa passividade. Em vez de correr atrás do acaso, e surpreendê-lo, ele apenas o ilumina e o ofusca, faz o acaso posar para a sua câmera.
Na recente série "Heads", a iluminação destaca cabeças de pedestres do fundo urbano. A luz as isola, e o fundo desaparece na escuridão, como se esses indivíduos estivessem sendo retratados em estúdio. As imagens não fazem referência a cenas de filme ou à história da arte, como em Cindy Sherman e Jeff Wall. São momentos do cotidiano que mais parecem cenas de cinema ou fotos de moda. Os pedestres anônimos ganham aura de modelos, manequins, personagens de filme.
A grande invenção de DiCorcia foi reduzir toda a encenação à luz e deixar seus modelos inconscientes do que os esperava, como infratores de trânsito surpreendidos pelo flash de uma câmera de controle de velocidade oculta, ainda sem entender ao certo o que acabou de acontecer com eles.


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