|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BERNARDO CARVALHO
A encenação da encenação
A fotografia contemporânea substituiu por uma
realidade fabricada o famoso
"momento decisivo" que celebrizou Henri Cartier-Bresson e que
tanto marcou o ponto de vista dos
fotógrafos modernos, guiados pela idéia de que tudo dependia da
sua presença de espírito para captar o instante exato em que a verdade se revelava à objetiva.
A fotografia hoje exposta em
museus e galerias já não revela,
mas encena. Dos auto-retratos de
Cindy Sherman às panorâmicas
de Andreas Gursky, passando pelas alegorias de Jeff Wall, os
exemplos são inúmeros.
Essas imagens também costumam fazer alusões narrativas,
dar a idéia de que há alguma coisa para contar, mas que não deve
ser dita, sob a pena de mostrar toda a sua banalidade e o seu vazio.
Fazem uma mistificação do cotidiano (Nan Goldin talvez seja o
exemplo mais evidente). A criação da mística e do mistério depende da encenação instantânea
do não-dito.
Dentro desse cenário, o americano Philip-Lorca diCorcia tem
um papel especialmente original
e traiçoeiro. Desde o final dos
anos 70, ele vem afinando um trabalho rigoroso de luz, se apropriando de técnicas de iluminação da publicidade e do cinema
para envolver numa atmosfera de
terror e irrealidade as cenas mais
banais do cotidiano.
Suas fotos expostas na galeria
Whitechapel, em Londres, até 24
de agosto, fazem parte de duas séries. A primeira, menos ambígua
(e, nesse sentido, menos extraordinária), chama-se "A Storybook
Life" e reúne 70 imagens feitas ao
longo de duas décadas. São, nas
palavras do fotógrafo, o que de
mais próximo ele já fez de um
diário íntimo, embora quase tudo
seja forjado, a começar pela suposta continuidade. São simulacros de situações familiares "naturais", envolvidas numa aura de
assombro.
A sequência começa com uma
imagem do pai do fotógrafo, vivo,
deitado numa cama, dormindo
diante de um televisor ligado, e
termina com a imagem do pai
morto, deitado num caixão aberto, exposto na sala vazia de uma
casa funerária.
"A fotografia é uma ficção que
contém a verdade", declarou o fotógrafo recentemente. A ironia e a
raiva que DiCorcia destila contra
a imagem que pretende captar a
realidade se manifestam na ambiguidade desse corpo deitado
(vivo e morto) que o espectador só
consegue distinguir como vivo ou
morto, a despeito de ele estar realmente vivo ou morto, pelo que o
cerca, pela encenação, pelo ambiente e pelos elementos de cena:
o quarto ou o velório. O pai podia
muito bem estar morto na cama
diante da TV ligada e vivo dentro
do caixão no velório vazio. E é
nessa súbita consciência por parte
do espectador que se revela o que
há de mais sinistro e misterioso
na realidade fotografada.
O grande salto do trabalho de
DiCorcia, entretanto, veio com as
fotos de rua. É o que o diferencia
da encenação da realidade tão
característica da sua geração. A
outra série exposta na Whitechapel ("Two Hours") é exemplar.
Reúne fotos tiradas de um mesmo
ponto de vista, numa esquina de
Havana, ao longo de duas horas,
sem o conhecimento prévio das
pessoas fotografadas. A iluminação torna essas cenas tão artificiais quanto retratos posados,
embora sua matéria-prima seja o
imprevisto e o acaso.
Anteriormente, DiCorcia já tinha pagado a mendigos de Los
Angeles para posarem como modelos em fotos que também forjavam uma naturalidade perturbadora, sempre por meio da luz. O
mais extraordinário, porém, só
aconteceu quando o fotógrafo
passou a retratar anônimos, em
Tóquio, em Nova York, em Calcutá e na Cidade do México, a despeito do conhecimento ou consentimento deles. A ambiguidade foi
levada ao cúmulo, as imagens
passaram a encenar a encenação.
Nessas fotos, DiCorcia dá a impressão de estar fotografando
uma realidade ficcional, quando
no fundo a "encenação" se reduz
a recriar o "momento decisivo",
sob uma aura de artificialidade,
por meio da luz. A iluminação dá
ao acaso uma aparência de ficção. É essa a sua maior perversão,
em nome de uma ambiguidade
sinistra.
Ao captar o instante, Cartier-Bresson exaltava o homem, o artista como revelador e criador, uma espécie de demiurgo moderno. O fotógrafo revelava, por uma
presença de espírito genial, a vida
que os olhos comuns não viam.
Ele capturava o acaso. DiCorcia,
ao contrário, encena uma espécie
de falsa passividade. Em vez de
correr atrás do acaso, e surpreendê-lo, ele apenas o ilumina e o
ofusca, faz o acaso posar para a
sua câmera.
Na recente série "Heads", a iluminação destaca cabeças de pedestres do fundo urbano. A luz as
isola, e o fundo desaparece na escuridão, como se esses indivíduos
estivessem sendo retratados em
estúdio. As imagens não fazem
referência a cenas de filme ou à
história da arte, como em Cindy
Sherman e Jeff Wall. São momentos do cotidiano que mais parecem cenas de cinema ou fotos de moda. Os pedestres anônimos ganham aura de modelos, manequins, personagens de filme.
A grande invenção de DiCorcia
foi reduzir toda a encenação à luz
e deixar seus modelos inconscientes do que os esperava, como infratores de trânsito surpreendidos
pelo flash de uma câmera de controle de velocidade oculta, ainda
sem entender ao certo o que acabou de acontecer com eles.
Texto Anterior: Animação: Anima Mundi desembarca na televisão Próximo Texto: Música: Stefon Harris põe futuro do jazz para vibrar Índice
|