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A viagem de Cendras
Autor refaz os caminhos do poeta, que chegou ao Brasil em 1924, conviveu com os modernistas e reencontrou a inspiração literária
GABRIELA LONGMAN
DA REPORTAGEM LOCAL
Blaise Cendrars chegou ao
Brasil em 1923, pelo porto de
Santos. Convidado por amigos
ligados ao modernismo, como
Paulo Prado e Tarsila do Amaral, o poeta franco-suíço (1887-1961) deixou Paris para uma estada que traria de volta sua inspiração, criaria novas relações e
marcaria sua literatura.
Quase 80 anos depois daquela aventura, o francês Jérôme
Michaud-Larivière desembarcou no Brasil, pelo aeroporto de
Guarulhos. Misto de pesquisador, jornalista e literato, veio
para seguir as pegadas de Cendrars, revivendo a experiência
do poeta pelas veredas do Rio,
São Paulo e Minas Gerais.
O resultado é o livro "Hoje
Cendrars Parte para o Brasil",
que a Companhia das Letras
acaba de lançar no Brasil.
Na entrevista que se segue, o
autor fala sobre a experiência
de reconhecer, tanto tempo depois, o país que Cendrars experimentou como uma vasta e
mítica terra tropical.
FOLHA - Seu livro não é uma biografia, tampouco é um diário de viagem. Se situa num meio-termo entre um trabalho histórico/jornalístico e um relato pessoal. A idéia desse
formato veio antes, durante ou depois da vinda ao Brasil?
JÉRÔME MICHAUD-LARIVIÈRE - Como ponto de partida, minha
idéia era seguir os rastros de
Cendrars no Brasil, para tentar
compreender o que foi, para
ele, a descoberta desse país que
o fez reconquistar sua confiança na literatura -pois não devemos esquecer que, quando
embarcou para o Brasil pela
primeira vez, no início dos anos
20, ele havia renunciado a publicar, amargurado que estava
com as disputas que dividiam o
mundo literário em Paris naquela época.
O que eu mesmo não sabia,
quando parti, era que, nesse jogo de espelhos, eu iria enxergar
meu próprio cansaço com as letras francesas, pós-modernas e
centradas em seu umbigo -no
fundo, bastante vazias- e que
de meus encontros no Brasil
iria retirar uma energia renovada e o desejo de relatar, que eu
talvez tivesse perdido. O Brasil
foi uma prodigiosa fonte de inspiração, algo que eu senti, como
Cendrars, ao redigir o livro.
Mas tudo isso eu só descobri ao
retornar à França.
FOLHA - É evidente que o Brasil
exerce uma espécie de fascínio nos
viajantes europeus desde o século
16. São inúmeras as citações de Cendrars sobre a natureza exuberante,
a religiosidade do povo, a graciosidade das mulheres. A imagem do
país como uma "imensidão tropical" faz ainda sentido para um europeu no século 21?
LARIVIÈRE - Sim, sim -não existe, para mim, nenhum outro
país que seja mais fascinante
para um europeu. Mas não é a
tropicalidade brasileira que
marca a velha Europa, hoje. É a
força do Brasil, sua riqueza diversificada, sua energia vital
adoçada por alguma coisa de
flexível e suave, é isso que faz o
Brasil ser tão atraente e particular para nós. "País mordente
que impregna a alma", dizia
Georges Bernanos [1888-1948],
que não pode ser suspeito de
tropicalismo.
FOLHA - Cendrars chega ao Brasil
num contexto de modernização intensa: o país vive o início de seu processo de urbanização e cidades como o Rio e São Paulo estão em pleno
desenvolvimento. Como o sr. analisa este Brasil que visitou, em 2002?
LARIVIÈRE - Eu digo no livro: sou
mau jornalista. O país é demasiado vasto e repleto de contrastes para que se possa encerrá-lo numa avaliação definitiva, forçosamente redutora. A
visão que tenho dele é necessariamente sentimental. Não sou
eu quem o é, mas o país inteiro
que nos convida a pensar emocionalmente (pois ele afeta todos os sentidos). Para mim, o
que caracteriza o Brasil, hoje, é
sua potência. Uma potência
sem complexos com relação
aos países "mais ricos" do
mundo, tipo G8, que, na realidade, estão totalmente esgotados, como a França, que não
tem outra saída senão tornar-se uma espécie de grande museu histórico-turístico.
FOLHA - Como se aproximou da
obra de Cendrars?
LARIVIÈRE - Foi puro deslumbramento. Primeiro com "La
Prose du Transsibérien", na escola, e, 20 anos mais tarde, com
"Les Pâques à New York". A
obra de Cendrars é antes de
mais nada um concentrado de
humanidade que nos faz tocar
o âmago da questão. É um estilo espantoso, sempre no limite
da ruptura, mas que se conserva em pé não se sabe como, pelo puro sopro da frase.
FOLHA - O sr. cita com freqüência a
máxima de Cendrars "O mundo é
minha representação", em que elementos ficcionais surgem para reforçar o aspecto de realidade. O sr. adotou-a como procedimento?
LARIVIÈRE - Prefiro enxergar o
mundo através da lente deformadora da recriação, seja pelo
olho da câmera ou de meu Macintosh. Quanto mais as coisas
são inventadas, mais elas devem a elas mesmas parecer verdadeiras. Como? Vivendo-as
mais de uma vez e recordando-as, um ou três anos mais tarde.
FOLHA - Cendrars ficou encantado
com o trabalho de Aleijadinho e com
a pintura de Tarsila. Do que pode ver
no Brasil há algo que tenha lhe chamado especialmente a atenção?
LARIVIÈRE - Correndo o risco de
surpreender e, possivelmente,
decepcioná-la, eu diria que minha maior emoção foi descobrir em Mariana um velho senhor que passara a vida toda
como funcionário da prefeitura
e que, após seu trabalho, pintava pequenos quadros que
transbordavam sensibilidade.
É uma arte que vai muito além
do rótulo clichê de "naïf", que,
por sinal, é superexplorado.
FOLHA - Após 2002 o sr. voltou ao
Brasil? Tem planos de fazê-lo?
LARIVIÈRE - É estranho, mas, aos
amigos franceses que me perguntam sobre isso, eu digo com
freqüência que estou voltando
ao Brasil. Não digo quando;
procuro não mentir, mas é evidente que devo deixar entender
que estive no país não faz muito
tempo. Acontece que não retornei ao Brasil desde 2002.
Mas a lembrança está tão viva,
que posso enganar a meu mundo sem má-fé.
FOLHA - No que tem trabalhado
atualmente na França?
LARIVIÈRE - Estou apaixonado
por Maria Bonita e seu marido,
o rei do cangaço. Por ora eu
projeto mil viagens ao sertão,
faço anotações, tricoto relatos
verídico-inacreditáveis, procurando sua verdade nos dois.
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