São Paulo, sábado, 22 de julho de 2006

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A viagem de Cendras

Autor refaz os caminhos do poeta, que chegou ao Brasil em 1924, conviveu com os modernistas e reencontrou a inspiração literária

GABRIELA LONGMAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Blaise Cendrars chegou ao Brasil em 1923, pelo porto de Santos. Convidado por amigos ligados ao modernismo, como Paulo Prado e Tarsila do Amaral, o poeta franco-suíço (1887-1961) deixou Paris para uma estada que traria de volta sua inspiração, criaria novas relações e marcaria sua literatura.
Quase 80 anos depois daquela aventura, o francês Jérôme Michaud-Larivière desembarcou no Brasil, pelo aeroporto de Guarulhos. Misto de pesquisador, jornalista e literato, veio para seguir as pegadas de Cendrars, revivendo a experiência do poeta pelas veredas do Rio, São Paulo e Minas Gerais.
O resultado é o livro "Hoje Cendrars Parte para o Brasil", que a Companhia das Letras acaba de lançar no Brasil.
Na entrevista que se segue, o autor fala sobre a experiência de reconhecer, tanto tempo depois, o país que Cendrars experimentou como uma vasta e mítica terra tropical.
 

FOLHA - Seu livro não é uma biografia, tampouco é um diário de viagem. Se situa num meio-termo entre um trabalho histórico/jornalístico e um relato pessoal. A idéia desse formato veio antes, durante ou depois da vinda ao Brasil?
JÉRÔME MICHAUD-LARIVIÈRE
- Como ponto de partida, minha idéia era seguir os rastros de Cendrars no Brasil, para tentar compreender o que foi, para ele, a descoberta desse país que o fez reconquistar sua confiança na literatura -pois não devemos esquecer que, quando embarcou para o Brasil pela primeira vez, no início dos anos 20, ele havia renunciado a publicar, amargurado que estava com as disputas que dividiam o mundo literário em Paris naquela época. O que eu mesmo não sabia, quando parti, era que, nesse jogo de espelhos, eu iria enxergar meu próprio cansaço com as letras francesas, pós-modernas e centradas em seu umbigo -no fundo, bastante vazias- e que de meus encontros no Brasil iria retirar uma energia renovada e o desejo de relatar, que eu talvez tivesse perdido. O Brasil foi uma prodigiosa fonte de inspiração, algo que eu senti, como Cendrars, ao redigir o livro. Mas tudo isso eu só descobri ao retornar à França.

FOLHA - É evidente que o Brasil exerce uma espécie de fascínio nos viajantes europeus desde o século 16. São inúmeras as citações de Cendrars sobre a natureza exuberante, a religiosidade do povo, a graciosidade das mulheres. A imagem do país como uma "imensidão tropical" faz ainda sentido para um europeu no século 21?
LARIVIÈRE
- Sim, sim -não existe, para mim, nenhum outro país que seja mais fascinante para um europeu. Mas não é a tropicalidade brasileira que marca a velha Europa, hoje. É a força do Brasil, sua riqueza diversificada, sua energia vital adoçada por alguma coisa de flexível e suave, é isso que faz o Brasil ser tão atraente e particular para nós. "País mordente que impregna a alma", dizia Georges Bernanos [1888-1948], que não pode ser suspeito de tropicalismo.

FOLHA - Cendrars chega ao Brasil num contexto de modernização intensa: o país vive o início de seu processo de urbanização e cidades como o Rio e São Paulo estão em pleno desenvolvimento. Como o sr. analisa este Brasil que visitou, em 2002?
LARIVIÈRE
- Eu digo no livro: sou mau jornalista. O país é demasiado vasto e repleto de contrastes para que se possa encerrá-lo numa avaliação definitiva, forçosamente redutora. A visão que tenho dele é necessariamente sentimental. Não sou eu quem o é, mas o país inteiro que nos convida a pensar emocionalmente (pois ele afeta todos os sentidos). Para mim, o que caracteriza o Brasil, hoje, é sua potência. Uma potência sem complexos com relação aos países "mais ricos" do mundo, tipo G8, que, na realidade, estão totalmente esgotados, como a França, que não tem outra saída senão tornar-se uma espécie de grande museu histórico-turístico.

FOLHA - Como se aproximou da obra de Cendrars?
LARIVIÈRE
- Foi puro deslumbramento. Primeiro com "La Prose du Transsibérien", na escola, e, 20 anos mais tarde, com "Les Pâques à New York". A obra de Cendrars é antes de mais nada um concentrado de humanidade que nos faz tocar o âmago da questão. É um estilo espantoso, sempre no limite da ruptura, mas que se conserva em pé não se sabe como, pelo puro sopro da frase.

FOLHA - O sr. cita com freqüência a máxima de Cendrars "O mundo é minha representação", em que elementos ficcionais surgem para reforçar o aspecto de realidade. O sr. adotou-a como procedimento?
LARIVIÈRE
- Prefiro enxergar o mundo através da lente deformadora da recriação, seja pelo olho da câmera ou de meu Macintosh. Quanto mais as coisas são inventadas, mais elas devem a elas mesmas parecer verdadeiras. Como? Vivendo-as mais de uma vez e recordando-as, um ou três anos mais tarde.

FOLHA - Cendrars ficou encantado com o trabalho de Aleijadinho e com a pintura de Tarsila. Do que pode ver no Brasil há algo que tenha lhe chamado especialmente a atenção?
LARIVIÈRE
- Correndo o risco de surpreender e, possivelmente, decepcioná-la, eu diria que minha maior emoção foi descobrir em Mariana um velho senhor que passara a vida toda como funcionário da prefeitura e que, após seu trabalho, pintava pequenos quadros que transbordavam sensibilidade. É uma arte que vai muito além do rótulo clichê de "naïf", que, por sinal, é superexplorado.

FOLHA - Após 2002 o sr. voltou ao Brasil? Tem planos de fazê-lo?
LARIVIÈRE
- É estranho, mas, aos amigos franceses que me perguntam sobre isso, eu digo com freqüência que estou voltando ao Brasil. Não digo quando; procuro não mentir, mas é evidente que devo deixar entender que estive no país não faz muito tempo. Acontece que não retornei ao Brasil desde 2002. Mas a lembrança está tão viva, que posso enganar a meu mundo sem má-fé.

FOLHA - No que tem trabalhado atualmente na França?
LARIVIÈRE
- Estou apaixonado por Maria Bonita e seu marido, o rei do cangaço. Por ora eu projeto mil viagens ao sertão, faço anotações, tricoto relatos verídico-inacreditáveis, procurando sua verdade nos dois.


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