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ARNALDO JABOR
"Eu Tu Eles" e "Amélia" dão luz ao cinema
Os pobres atravessam o cinema brasileiro desde seu
início. Já tivemos o pobre lírico
das "Favelas dos Meus Amores",
tivemos os risíveis Jecas Tatus, os
Mazzaropis, os amáveis Moleques Tião, tivemos depois a chegada do neo-realismo com "Agulha no Palheiro", "Rio, 40 Graus",
"Rio, Zona Norte", mostrando o
pobre como vítima de um sistema, como objeto de piedade, até
que um dia o pobre virou "proletário", oprimido, erguendo-se finalmente como o herói épico do
cinema novo.
Tínhamos uma relação de
amor-ódio com os pobres. Por um
lado, nós os considerávamos
"agentes do futuro", que nos livrariam das "malaises" do capitalismo. Os pobres eram a "nossa"
salvação, símbolos de uma revolução que não vinha nunca. Por
outro lado, sofríamos com sua ignorância e passividade. Víamos
com certo desapreço o teatro ou o
cinema social.
Importante era o cinema político. Orgulho-me até hoje da definição que criei: no teatro social, o
pobre é o objeto da ação dramática; no teatro político, ele é o sujeito. Éramos assim em 1967...
Hoje, entre os novos cineastas,
os pobres perderam sua face mística e ganharam carne real, voltando a um neo-realismo "aggiornato", não mais personagens
com auras alegóricas. Em filmes
como "Central do Brasil", eles
amam, sofrem, são tão dignos de
pertencer à cidadania quanto os
homens da classe média.
Agora, em "Eu Tu Eles", de Andrucha Waddington, os camponeses protagonizam um drama
semicômico que poderia acontecer num condomínio da Barra ou
no Morumbi: uma mulher vivendo feliz com três homens.
E é, justamente, a naturalidade,
a normalidade de seus amores e
desejos que nos emociona neste
filme, não por nos enlevar num
sonho de futuro, nem por nos dar
comiseração por pobres diabos,
mas por nos contar, de um modo
"cool" e fraternal, um drama do
"coração", num cenário geralmente usado para cangaços e sagas históricas.
Ali, naquela secura quase marciana, naquele chão vermelho, as
histórias de amor dos excluídos ficam ainda mais perturbadoras,
mostrando que a vida "normal"
insiste em existir em meio à natureza miserável e inóspita. Por não
falar de fome nem de seca, o filme
reitera, reenfoca, para nós, o absurdo social da vida sertaneja.
"Eu Tu Eles" é uma cruza entre
"Vidas Secas" e "Dona Flor e Seus
Dois Maridos". Assim o filme foi
visto em Cannes, onde encantou o
público e a crítica, fascinados com
a genial interpretação de Regina
Casé, Stênio Garcia, Lima Duarte
e Luiz Vasconcelos, com a maravilhosa luz de Breno Silveira, a
música de Gilberto Gil e o roteiro
de Elena Soárez. Com certeza, o
filme causará mais estranheza lá
fora do que no Brasil, já acostumados que estamos com o flagelo
do Nordeste.
Entrevistado outro dia, Andrucha, o diretor de 30 anos, declarou
seu currículo: "Bem... eu já fiz uns
600 filmes de publicidade...". É isso.
O talento e a competência desses jovens da Conspiração Filmes,
do Rio, o novo cinema novo, não
nasceram do delírio ou do romantismo que, às vezes, justificava ignorância e preguiça; essa
nouvelle vague carioca aprendeu
no mundo real e exigente da publicidade. Os exibidores estrangeiros disputaram o filme a tapa
-acabou sendo comprado pela
Sony. Se bobear, ganha o Oscar de
filme estrangeiro, caso não apareça outro estafermo puxa-saco de
americano, do tipo de Roberto
Benigni.
"Amélia"
O novo filme de Ana Carolina
também fala dos pobres. Três mulheres do interior de Minas vão
trabalhar como costureiras da
atriz francesa Sarah Bernhardt,
que vem ao Teatro Municipal do
Rio, e são culpadas pelo acidente
real, no qual a diva destruiu o joelho, tendo sua perna amputada
depois em Paris.
Ana Carolina sempre foi uma
agradável anomalia no cinema
novo. Enquanto os marmanjos
descreviam a "realidade objetiva", ela falava do delírio. Seu primeiro filme, "Mar de Rosas", é
uma de nossas obras-primas, prefigurando, por exemplo, em 78,
todo o cinema de Almodóvar.
Uma vez ela me disse: "Um filme tem de provocar uma crise no
espectador". É verdade. Como no
"teatro desagradável" de Nelson
Rodrigues, Ana Carolina sempre
usou a neurose como tema para
suas comédias anarquistas, nas
quais as babaquices da classe média acabam transformadas (aí,
sim...) em paródias épicas, resultando numa espécie de Brecht
psicanalítico (vide "O Casamento
do Pequeno Burguês", por exemplo).
Depois de "Das Tripas Coração" e "Sonho de Valsa", este
"Amélia" atinge um nível de sofisticação crítica perdido no cinema atual, pois Ana mantém sua
fidelidade ao falecido cinema de
autor e à teimosia em fazer arte
acima de comércio fácil.
Seu procedimento dramático
cria um gênero de cinema ao
avesso, em que a narrativa convencional não leva a avanços,
mas ao fracasso de todas as vontades. Tudo no roteiro dá errado
para personagens e seus desejos,
como aliás ocorre em filmes como
"Pulp Fiction" ou "Daunbailó".
A mise-en-scène de Ana Carolina tem uma elegância rara hoje
em dia, com "travellings" e panorâmicas tratadas pela fotografia
genial de Rodolfo Sanchez, lançando luz sobre algumas das melhores atrizes brasileiras, que dão
shows de competência: Marília
Pêra, Míriam Muniz, Camila
Amado e a talentosíssima novata
Alice Borges. Nem tudo é pagode
ou "missão impossível". Há dois
filmes imperdíveis estreando juntos este mês. São luzes de agosto.
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