São Paulo, terça-feira, 22 de agosto de 2000


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ARNALDO JABOR
"Eu Tu Eles" e "Amélia" dão luz ao cinema

Os pobres atravessam o cinema brasileiro desde seu início. Já tivemos o pobre lírico das "Favelas dos Meus Amores", tivemos os risíveis Jecas Tatus, os Mazzaropis, os amáveis Moleques Tião, tivemos depois a chegada do neo-realismo com "Agulha no Palheiro", "Rio, 40 Graus", "Rio, Zona Norte", mostrando o pobre como vítima de um sistema, como objeto de piedade, até que um dia o pobre virou "proletário", oprimido, erguendo-se finalmente como o herói épico do cinema novo.
Tínhamos uma relação de amor-ódio com os pobres. Por um lado, nós os considerávamos "agentes do futuro", que nos livrariam das "malaises" do capitalismo. Os pobres eram a "nossa" salvação, símbolos de uma revolução que não vinha nunca. Por outro lado, sofríamos com sua ignorância e passividade. Víamos com certo desapreço o teatro ou o cinema social.
Importante era o cinema político. Orgulho-me até hoje da definição que criei: no teatro social, o pobre é o objeto da ação dramática; no teatro político, ele é o sujeito. Éramos assim em 1967...
Hoje, entre os novos cineastas, os pobres perderam sua face mística e ganharam carne real, voltando a um neo-realismo "aggiornato", não mais personagens com auras alegóricas. Em filmes como "Central do Brasil", eles amam, sofrem, são tão dignos de pertencer à cidadania quanto os homens da classe média.
Agora, em "Eu Tu Eles", de Andrucha Waddington, os camponeses protagonizam um drama semicômico que poderia acontecer num condomínio da Barra ou no Morumbi: uma mulher vivendo feliz com três homens.
E é, justamente, a naturalidade, a normalidade de seus amores e desejos que nos emociona neste filme, não por nos enlevar num sonho de futuro, nem por nos dar comiseração por pobres diabos, mas por nos contar, de um modo "cool" e fraternal, um drama do "coração", num cenário geralmente usado para cangaços e sagas históricas.
Ali, naquela secura quase marciana, naquele chão vermelho, as histórias de amor dos excluídos ficam ainda mais perturbadoras, mostrando que a vida "normal" insiste em existir em meio à natureza miserável e inóspita. Por não falar de fome nem de seca, o filme reitera, reenfoca, para nós, o absurdo social da vida sertaneja.
"Eu Tu Eles" é uma cruza entre "Vidas Secas" e "Dona Flor e Seus Dois Maridos". Assim o filme foi visto em Cannes, onde encantou o público e a crítica, fascinados com a genial interpretação de Regina Casé, Stênio Garcia, Lima Duarte e Luiz Vasconcelos, com a maravilhosa luz de Breno Silveira, a música de Gilberto Gil e o roteiro de Elena Soárez. Com certeza, o filme causará mais estranheza lá fora do que no Brasil, já acostumados que estamos com o flagelo do Nordeste.
Entrevistado outro dia, Andrucha, o diretor de 30 anos, declarou seu currículo: "Bem... eu já fiz uns 600 filmes de publicidade...". É isso.
O talento e a competência desses jovens da Conspiração Filmes, do Rio, o novo cinema novo, não nasceram do delírio ou do romantismo que, às vezes, justificava ignorância e preguiça; essa nouvelle vague carioca aprendeu no mundo real e exigente da publicidade. Os exibidores estrangeiros disputaram o filme a tapa -acabou sendo comprado pela Sony. Se bobear, ganha o Oscar de filme estrangeiro, caso não apareça outro estafermo puxa-saco de americano, do tipo de Roberto Benigni.

"Amélia"
O novo filme de Ana Carolina também fala dos pobres. Três mulheres do interior de Minas vão trabalhar como costureiras da atriz francesa Sarah Bernhardt, que vem ao Teatro Municipal do Rio, e são culpadas pelo acidente real, no qual a diva destruiu o joelho, tendo sua perna amputada depois em Paris.
Ana Carolina sempre foi uma agradável anomalia no cinema novo. Enquanto os marmanjos descreviam a "realidade objetiva", ela falava do delírio. Seu primeiro filme, "Mar de Rosas", é uma de nossas obras-primas, prefigurando, por exemplo, em 78, todo o cinema de Almodóvar.
Uma vez ela me disse: "Um filme tem de provocar uma crise no espectador". É verdade. Como no "teatro desagradável" de Nelson Rodrigues, Ana Carolina sempre usou a neurose como tema para suas comédias anarquistas, nas quais as babaquices da classe média acabam transformadas (aí, sim...) em paródias épicas, resultando numa espécie de Brecht psicanalítico (vide "O Casamento do Pequeno Burguês", por exemplo).
Depois de "Das Tripas Coração" e "Sonho de Valsa", este "Amélia" atinge um nível de sofisticação crítica perdido no cinema atual, pois Ana mantém sua fidelidade ao falecido cinema de autor e à teimosia em fazer arte acima de comércio fácil.
Seu procedimento dramático cria um gênero de cinema ao avesso, em que a narrativa convencional não leva a avanços, mas ao fracasso de todas as vontades. Tudo no roteiro dá errado para personagens e seus desejos, como aliás ocorre em filmes como "Pulp Fiction" ou "Daunbailó".
A mise-en-scène de Ana Carolina tem uma elegância rara hoje em dia, com "travellings" e panorâmicas tratadas pela fotografia genial de Rodolfo Sanchez, lançando luz sobre algumas das melhores atrizes brasileiras, que dão shows de competência: Marília Pêra, Míriam Muniz, Camila Amado e a talentosíssima novata Alice Borges. Nem tudo é pagode ou "missão impossível". Há dois filmes imperdíveis estreando juntos este mês. São luzes de agosto.



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