São Paulo, quarta-feira, 22 de agosto de 2001

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LIVRO

Obra lançada pela UFRJ é organizada por Peter Fry e traz nove textos de brasileiros, moçambicanos e argentino

"Moçambique" revela conflitos do país

CLAUDIA ANTUNES
DA SUCURSAL DO RIO

Os biógrafos de Samora Machel, primeiro presidente de Moçambique independente, registram que ele descendia de um guerreiro do Exército de Ngungunhana, rei africano que resistira aos colonialistas portugueses. No poder, determinado a construir o "homem novo", sob a bandeira do combate ao tribalismo, Machel proclamava: "Um inimigo é sempre um inimigo. Não importa se é teu irmão, mulher, cunhado, pai ou filho".
Como na vida de Machel, o conflito e a síntese entre as tradições e a modernidade -que trouxe a própria idéia de Estado-nação e as ideologias universais- são o tema comum aos ensaios reunidos no livro "Moçambique", organizado pelo antropólogo Peter Fry e lançado pela editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"Na África, esse dilema é o centro de tudo. Ele torna-se ainda maior porque o que chamamos de tradição também vem com a colonização. Antes, era simplesmente um modo de vida. O colonizador chegou, tirou uma fotografia daquele momento e congelou como tradição, em oposição à "civilização'", diz Fry, 59, coordenador de um programa pioneiro, patrocinado pela Fundação Ford, que trouxe 20 moçambicanos para estudar no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.
O projeto, que deu origem ao livro, custou US$ 1 milhão e levou pesquisadores a Moçambique. Por efeito não previsto, fez surgir no paulistano Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), através do professor da Unicamp Omar Ribeiro Thomaz, uma linha de estudos africanos.
Os nove ensaios do livro são de autoria de seis moçambicanos, dois brasileiros e um argentino, Lorenzo Macagno. A introdução resume os dados estatísticos de Moçambique, um dos países mais pobres do mundo, saído há menos de uma década de 30 anos de guerra, com 60% da população de 17 milhões de pessoas analfabeta.
Fry chegou a Maputo para tocar o programa no ano da queda do Muro de Berlim, 1989. Moçambique deixava para trás a breve experiência socialista e vivia uma guerra civil atroz. Na Universidade Eduardo Mondlane, a única na época, não havia curso de ciências sociais. Os futuros bolsistas foram selecionados em concurso público nas cinco escolas secundárias.
Dos 20 estudantes que vieram para o Brasil, nos anos 90, sete chegaram ao mestrado e três fazem doutorado. Todos voltaram para seu país, onde cinco lecionam na Eduardo Mondlane, agora com seu Instituto de Ciências Sociais, e quatro trabalham no Ministério de Ação Social.
"Os ensaios marcam uma geração olhando para si mesma e soltando o verbo, durante anos controlado. Às vezes eles são cruéis demais. Mas reconhecem, de certa maneira, que foram privilegiados pelo passado. Hoje em dia, se você é filho de pobre, na zona rural, sua chance de chegar à universidade é micro. Tudo foi monetarizado, e as instituições estatais de educação não competem com as instituições privadas", diz Fry.
O antropólogo lamenta que, apesar de todo o blablablá sobre a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), o Brasil oficial, que cedeu aos moçambicanos as vagas na universidade, não dê continuidade a programas como esse. Em suas viagens a Moçambique, Fry conheceu freiras brasileiras que o fizeram rever seu anticlericalismo e viu a influência crescente das igrejas neopentecostais e das novelas da Globo.
A distância que separa o discurso e a prática da CPLP é tanta que, há seis anos, Moçambique entrou na Comunidade Britânica. Uma ofensa, na visão portuguesa, mas, cercados de países de língua inglesa, os moçambicanos já mantinham boas relações com os britânicos e têm o seu futuro ligado ao da África do Sul, vizinha e potência regional. "Nas enchentes do ano passado, os helicópteros de ajuda que chegaram primeiro foram os da África do Sul, depois os da Comunidade Britânica e só então os da CPLP", exemplifica Fry.


MOÇAMBIQUE. Organizado por: Peter Fry. Lançamento: Editora da UFRJ. Quanto: R$ 15 (338 págs.).



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