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LIVRO
Obra lançada pela UFRJ é organizada por Peter Fry e traz nove textos de brasileiros, moçambicanos e argentino
"Moçambique" revela conflitos do país
CLAUDIA ANTUNES
DA SUCURSAL DO RIO
Os biógrafos de Samora Machel,
primeiro presidente de Moçambique independente, registram que
ele descendia de um guerreiro do
Exército de Ngungunhana, rei
africano que resistira aos colonialistas portugueses. No poder, determinado a construir o "homem
novo", sob a bandeira do combate
ao tribalismo, Machel proclamava: "Um inimigo é sempre um inimigo. Não importa se é teu irmão,
mulher, cunhado, pai ou filho".
Como na vida de Machel, o conflito e a síntese entre as tradições e
a modernidade -que trouxe a
própria idéia de Estado-nação e as
ideologias universais- são o tema comum aos ensaios reunidos
no livro "Moçambique", organizado pelo antropólogo Peter Fry e
lançado pela editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"Na África, esse dilema é o centro de tudo. Ele torna-se ainda
maior porque o que chamamos
de tradição também vem com a
colonização. Antes, era simplesmente um modo de vida. O colonizador chegou, tirou uma fotografia daquele momento e congelou como tradição, em oposição à
"civilização'", diz Fry, 59, coordenador de um programa pioneiro,
patrocinado pela Fundação Ford,
que trouxe 20 moçambicanos para estudar no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.
O projeto, que deu origem ao livro, custou US$ 1 milhão e levou
pesquisadores a Moçambique.
Por efeito não previsto, fez surgir
no paulistano Cebrap (Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento), através do professor da
Unicamp Omar Ribeiro Thomaz,
uma linha de estudos africanos.
Os nove ensaios do livro são de
autoria de seis moçambicanos,
dois brasileiros e um argentino,
Lorenzo Macagno. A introdução
resume os dados estatísticos de
Moçambique, um dos países mais
pobres do mundo, saído há menos de uma década de 30 anos de
guerra, com 60% da população de
17 milhões de pessoas analfabeta.
Fry chegou a Maputo para tocar
o programa no ano da queda do
Muro de Berlim, 1989. Moçambique deixava para trás a breve experiência socialista e vivia uma
guerra civil atroz. Na Universidade Eduardo Mondlane, a única na
época, não havia curso de ciências
sociais. Os futuros bolsistas foram
selecionados em concurso público nas cinco escolas secundárias.
Dos 20 estudantes que vieram
para o Brasil, nos anos 90, sete
chegaram ao mestrado e três fazem doutorado. Todos voltaram
para seu país, onde cinco lecionam na Eduardo Mondlane, agora com seu Instituto de Ciências
Sociais, e quatro trabalham no
Ministério de Ação Social.
"Os ensaios marcam uma geração olhando para si mesma e soltando o verbo, durante anos controlado. Às vezes eles são cruéis
demais. Mas reconhecem, de certa maneira, que foram privilegiados pelo passado. Hoje em dia, se
você é filho de pobre, na zona rural, sua chance de chegar à universidade é micro. Tudo foi monetarizado, e as instituições estatais de
educação não competem com as
instituições privadas", diz Fry.
O antropólogo lamenta que,
apesar de todo o blablablá sobre a
CPLP (Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa), o Brasil oficial, que cedeu aos moçambicanos as vagas na universidade, não
dê continuidade a programas como esse. Em suas viagens a Moçambique, Fry conheceu freiras
brasileiras que o fizeram rever seu
anticlericalismo e viu a influência
crescente das igrejas neopentecostais e das novelas da Globo.
A distância que separa o discurso e a prática da CPLP é tanta que,
há seis anos, Moçambique entrou
na Comunidade Britânica. Uma
ofensa, na visão portuguesa, mas,
cercados de países de língua inglesa, os moçambicanos já mantinham boas relações com os britânicos e têm o seu futuro ligado ao
da África do Sul, vizinha e potência regional. "Nas enchentes do
ano passado, os helicópteros de
ajuda que chegaram primeiro foram os da África do Sul, depois os
da Comunidade Britânica e só então os da CPLP", exemplifica Fry.
MOÇAMBIQUE. Organizado por: Peter
Fry. Lançamento: Editora da UFRJ.
Quanto: R$ 15 (338 págs.).
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