São Paulo, sábado, 22 de agosto de 1998

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DISCO
Caixa revisa talento trágico de Elis Regina

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

"Transversal do Tempo", caixote de 21 CDs que integra a obra de Elis Regina (1945-82) na gravadora PolyGram, vem recompor os momentos mais relevantes da sina trágica -e glamourosa- cumprida pela intérprete gaúcha na história da MPB.
Trata-se de lançamento de elite. Segundo a gravadora, a tiragem é limitada (5.000 exemplares), e os CDs não serão colocados avulsos à venda. É, assim, como se permanecessem fora de catálogo aos pobres mortais, o que é uma lástima.
A quem possa derrubar cerca de R$ 300 no pacote, "Transversal do Tempo" é um risco no céu, explicação alinhada da tragédia de Elis. Sim, pois tratou-se de uma tragédia, ainda que ela atingisse todo o reconhecimento e toda a bajulação com que uma grande cantora poderia sonhar. Elis foi, ao longo de quase toda a sua carreira, uma intérprete desesperada em busca de um compositor.
Gal Costa e Maria Bethânia, as outras divas da época, sempre possuíram Caetano Veloso. Elis jamais encontrou "o" autor que pudesse traduzir à perfeição.
Por conta disso, desandou a revelar novos nomes, de Milton Nascimento e João Bosco a Belchior, Fagner, Ivan Lins, Renato Teixeira e, nos últimos anos, Tunai e Guilherme Arantes.
Nenhum dos citados pôde, é óbvio, significar para Elis o que Caetano e Gil significaram para Gal, nem o que Caetano e Chico Buarque foram para Bethânia. Essa foi a linha trágica essencial dos passos obsessivos de Elis. Houve tragédias menores. Após início atabalhoado -três LPs na Continental, de uma cantora enfezada que era meio Angela Maria, meio Celly Campello-, Elis se viu aprisionada no rótulo de cantora de TV.
O programa "O Fino da Bossa" foi o responsável. Mas ela também. A canção de protesto era a voga, e, desde 64, a estrela Nara Leão ditava regras nesse campo. Elis era competitiva. Nara se tornou porta-voz de sambistas do morro -Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Keti. Elis se avizinhou, cooptando Jair Rodrigues, sambista popular, de auditório.
Juntos, fizeram um escarcéu, apostando em quem gritaria mais alto. Assim Elis não iria muito longe, ela não tardou a perceber.
Foi se esforçar por se amansar e -veja a ironia, a nova pequena tragédia- ajudou a descobrir moços como... Caetano e Gil. Nem supunha que os jovens que gravava em 66 estariam, um ano mais tarde, aplicando-lhe a peça que a tornaria peça precoce de museu.
Tal peça chamou-se tropicalismo. Aí, o que parecia progressista em Elis se transformou em franco conservadorismo. Ela parece até ter tentado engolir o orgulho e se aliar ao inimigo -segundo o produtor tropicalista Manoel Barenbein, faria, em 69, disco sob a batuta do maestro Rogério Duprat, figura-chave do movimento. Não fez, não se sabe por quê.
Em 70, gravou inéditas de Caetano e Gil exilados em "Em Pleno Verão...", um de seus grandes discos. Antes rotulada de nacionalista, ao mesmo tempo piscava ao internacionalismo apontado pela tropicália, mas sob outro ângulo.
Veio integrar, meio espontaneamente, um momento de alta da soul music no Brasil. "Como & Porque" (69), "Em Pleno Verão..." (70) e "Ela" (71) pareciam impetuosos discos de uma cantora branca de alma negra.
Por um momento, parecia que os "soulmen" Roberto e Erasmo viriam a ser os autores por que Elis esperava. Se houvesse se consumado, as três trajetórias teriam sido bem outras, mas, nova pequena tragédia, a Elis negra abortou.
Num instante imediatamente posterior, Elis, enquanto desbravava a MPB meio quadrada de Bosco e Milton, voltava a flertar com Gil, tornando-se num lapso -mais ironia- quase uma sambista. É "Elis" (73), outro de seus álbuns inspirados. Ainda houve o disco-mito "Elis & Tom" (74, com Jobim) e "Elis" (74), ainda da fase Gil/Milton/Bosco.
Aí, como por encanto, tudo desandou. Roberto, Erasmo e Gil saíram de cena, Elis começou a atirar para todas as direções. Embrenhou-se pela música campestre de Zé Rodrix, Guarabyra e Renato Teixeira, pelo neotropicalismo/neoprotesto de Fagner e Belchior, pelo soul incolor de Ivan Lins, pela latinidade bicho-grilo de Violeta Parra.
Pior, mergulhou na emoção que seu estilo interpretativo provocava nas platéias e acreditou em si mesma como cantora de pele, de alma exposta, de lágrimas prontas a explodir a cada trinado.
Ficou -inevitável?- mal- humorada. Perdeu o poder de ironia. Beirou a caricatura. Vestiu a carapuça de retrógrada, estacionada. Recusou-se a evoluir em terreno que não fosse o da técnica vocal.
Fez, enfim, a cama para se tornar cantora daquelas que no quartinho dos fundos se chama de "chata". Talvez não fosse, mas sim presa do trágico. Afrontou a tragédia às últimas consequências, ainda que nefastas à MPB e a ela própria. Teimosa e corajosa.

Caixa: Transversal do Tempo (21 CDs) Artista: Elis Regina Lançamento: PolyGram Quanto: entre R$ 250 e R$ 300


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