São Paulo, sexta-feira, 22 de setembro de 2000

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CARLOS HEITOR CONY
Denúncia, cumplicidade e suicídio

Um dos dramas -e talvez o único drama- do artista é este: denúncia ou cumplicidade. Com a variante: denúncia e cumplicidade. Desde que o mundo é mundo, os artistas, de uma forma ou de outra, procuram denunciar a sociedade em geral e, em particular, o indivíduo.
Basta lembrar que esse mesmo indivíduo conseguiu ser a besta negra das mais recentes formas de totalitarismo, seja da direita seja da esquerda. Tanto o nazismo como o comunismo condenavam o indivíduo como asquerosa chaga burguesa.
Numa pesquisa apressada, veríamos que todas as grandes obras, do passado ou dos nossos dias, têm um sentido comum entre si: a denúncia. Daí que neste final de século tudo já foi denunciado: o capitalismo, o socialismo, a religião, a falta de religião, os sentimentos, a ausência de sentimentos, a ciência, a técnica, a paz e a guerra, a economia, a história e a falta de história. Praticamente, não há mais o que denunciar. Ao repisar nesta tecla, o artista não apenas está escolhendo o caminho mais fácil, mas o mais ocioso.
É válida a pergunta: até que ponto o artista, ao cometer mais uma denúncia, não se torna cúmplice da coisa denunciada? Nos anos 50, quem melhor colocou a questão foi Fellini, num filme que hoje podemos considerar datado. Em "8 e Meio"", o crítico literário Daumier condena no diretor cinematográfico Guido a denúncia ao catolicismo, uma vez que, com a denúncia, o diretor deixa evidente a sua cumplicidade com os valores da Itália católica e clerical. Além de a denúncia ser inútil e até certo ponto hipócrita, o denunciador procede exatamente pelos moldes e pelos esquemas do objeto denunciado. Fingindo-se de neutro ou imparcial, faz o mesmo jogo. É cúmplice.
Ampliando-se o problema, chegaremos ao impasse que Albert Camus, poucos anos antes de Fellini, enunciou com desnecessária ênfase: só o suicídio resolveria o impasse existencial e moral da condição humana, dispensando-a da denúncia e absolvendo-a da cumplicidade.
Fora do suicídio não haveria salvação. À medida que procuramos salvar a própria pele, integramos a poderosa máfia da cumplicidade com tudo o que há de condenável na ""famiglia" humana. Viver, continuar vivendo, em todos os sentidos tornar-se uma ""cosa nostra".
Sem o suicídio, tornamo-nos todos cúmplices. Continuar vivendo neste mundo cheio de erros, de sangue e de estupidez é pactuar com ele. Mais: é ajudá-lo a continuar nos erros, no sangue e na estupidez, ainda que denunciemos sinceramente o erro, o sangue e a estupidez.
Como solução individual, o suicídio até que resolve a questão. O homem veio ao mundo sem ser consultado. Sem ser consultado, por química que ele não cria nem domina, um dia descobre o tipo de mundo que veio habitar. Mudá-lo implica uma mão-de-obra colossal e problemática, tantos já tentaram isso que tornaram o mundo produtor de anticorpos que o protegem tal como foi feito e tal como continua.
A saída individual pelo suicídio pode até ser lógica. No fundo é um erro e, pior do que erro, é um desperdício.
No plano social, a coisa se complica, pois os laboratórios do pensamento e da técnica não se cansam de produzir soluções coletivas para resolver o impasse. Prolonga-se a vida humana na suposição de que vivendo mais se possa viver melhor. Congelamos embriões, clonamos indivíduos, criamos um universo virtual que dominamos de mentirinha, apertando botões e mexendo com um objeto esquisito que não por acaso se chama ""mouse". Um rato constrói uma possibilidade eletrônica que nunca se materializa quando se tenta transportá-la à realidade da carne. Isso é o que de melhor a técnica nos pode oferecer.
Quanto aos sistemas filosóficos e religiões, eles aí estão, sucedendo-se ao longo dos séculos, oferecendo fórmulas e métodos para refazer o mundo com menos erros, com menos sangue e com menos estupidez. Mas essas fórmulas, esses métodos, para vingarem, frutificarem, exigem que nos tornemos cúmplices de novos erros, de mais sangue e, alguns mais, outros menos, de uma boa dose de estupidez.
E agora?
Os inconformados protestam. Os inconformados denunciam, os inconformados tomam tranquilizantes, deixam crescer a barba e deixam de tomar banho todos os dias, abrigam-se na arte, fazem poemas, instalações complicadas que, não cabendo nos museus, invadem os jardins e as praças, compram uma guitarra e, com toda a estridência provocada, só complicam o que já é complicado.
Suicídio mesmo, que é bom, ninguém pensa a sério nele. Deixam a solução radical para os amantes traídos, os comerciantes falidos, os achados perdidos. Não sei quem falou quando soube que um amigo se suicidara: "Lamento, mas não posso condená-lo por isso".
Não se rejubilem em vão. Não penso em suicidar-me. Por curiosidade, pretendo continuar vivendo.


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