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CARLOS HEITOR CONY
Denúncia, cumplicidade e suicídio
Um dos dramas -e talvez o
único drama- do artista é
este: denúncia ou cumplicidade.
Com a variante: denúncia e cumplicidade. Desde que o mundo é
mundo, os artistas, de uma forma
ou de outra, procuram denunciar
a sociedade em geral e, em particular, o indivíduo.
Basta lembrar que esse mesmo
indivíduo conseguiu ser a besta
negra das mais recentes formas
de totalitarismo, seja da direita
seja da esquerda. Tanto o nazismo como o comunismo condenavam o indivíduo como asquerosa
chaga burguesa.
Numa pesquisa apressada, veríamos que todas as grandes
obras, do passado ou dos nossos
dias, têm um sentido comum entre si: a denúncia. Daí que neste
final de século tudo já foi denunciado: o capitalismo, o socialismo,
a religião, a falta de religião, os
sentimentos, a ausência de sentimentos, a ciência, a técnica, a paz
e a guerra, a economia, a história
e a falta de história. Praticamente, não há mais o que denunciar.
Ao repisar nesta tecla, o artista
não apenas está escolhendo o caminho mais fácil, mas o mais
ocioso.
É válida a pergunta: até que
ponto o artista, ao cometer mais
uma denúncia, não se torna cúmplice da coisa denunciada? Nos
anos 50, quem melhor colocou a
questão foi Fellini, num filme que
hoje podemos considerar datado.
Em "8 e Meio"", o crítico literário
Daumier condena no diretor cinematográfico Guido a denúncia
ao catolicismo, uma vez que, com
a denúncia, o diretor deixa evidente a sua cumplicidade com os
valores da Itália católica e clerical. Além de a denúncia ser inútil
e até certo ponto hipócrita, o denunciador procede exatamente
pelos moldes e pelos esquemas do
objeto denunciado. Fingindo-se
de neutro ou imparcial, faz o mesmo jogo. É cúmplice.
Ampliando-se o problema, chegaremos ao impasse que Albert
Camus, poucos anos antes de Fellini, enunciou com desnecessária
ênfase: só o suicídio resolveria o
impasse existencial e moral da
condição humana, dispensando-a da denúncia e absolvendo-a da
cumplicidade.
Fora do suicídio não haveria
salvação. À medida que procuramos salvar a própria pele, integramos a poderosa máfia da
cumplicidade com tudo o que há
de condenável na ""famiglia" humana. Viver, continuar vivendo,
em todos os sentidos tornar-se
uma ""cosa nostra".
Sem o suicídio, tornamo-nos todos cúmplices. Continuar vivendo
neste mundo cheio de erros, de
sangue e de estupidez é pactuar
com ele. Mais: é ajudá-lo a continuar nos erros, no sangue e na estupidez, ainda que denunciemos
sinceramente o erro, o sangue e a
estupidez.
Como solução individual, o suicídio até que resolve a questão. O
homem veio ao mundo sem ser
consultado. Sem ser consultado,
por química que ele não cria nem
domina, um dia descobre o tipo
de mundo que veio habitar. Mudá-lo implica uma mão-de-obra
colossal e problemática, tantos já
tentaram isso que tornaram o
mundo produtor de anticorpos
que o protegem tal como foi feito e
tal como continua.
A saída individual pelo suicídio
pode até ser lógica. No fundo é
um erro e, pior do que erro, é um
desperdício.
No plano social, a coisa se complica, pois os laboratórios do pensamento e da técnica não se cansam de produzir soluções coletivas para resolver o impasse. Prolonga-se a vida humana na suposição de que vivendo mais se possa viver melhor. Congelamos embriões, clonamos indivíduos, criamos um universo virtual que dominamos de mentirinha,
apertando botões e mexendo com
um objeto esquisito que não por
acaso se chama ""mouse". Um rato constrói uma possibilidade eletrônica que nunca se materializa
quando se tenta transportá-la à
realidade da carne. Isso é o que de
melhor a técnica nos pode oferecer.
Quanto aos sistemas filosóficos
e religiões, eles aí estão, sucedendo-se ao longo dos séculos, oferecendo fórmulas e métodos para
refazer o mundo com menos erros, com menos sangue e com menos estupidez. Mas essas fórmulas, esses métodos, para vingarem, frutificarem, exigem que nos
tornemos cúmplices de novos erros, de mais sangue e, alguns
mais, outros menos, de uma boa
dose de estupidez.
E agora?
Os inconformados protestam.
Os inconformados denunciam, os
inconformados tomam tranquilizantes, deixam crescer a barba e
deixam de tomar banho todos os
dias, abrigam-se na arte, fazem
poemas, instalações complicadas
que, não cabendo nos museus, invadem os jardins e as praças,
compram uma guitarra e, com toda a estridência provocada, só
complicam o que já é complicado.
Suicídio mesmo, que é bom,
ninguém pensa a sério nele. Deixam a solução radical para os
amantes traídos, os comerciantes
falidos, os achados perdidos. Não
sei quem falou quando soube que
um amigo se suicidara: "Lamento, mas não posso condená-lo por
isso".
Não se rejubilem em vão. Não
penso em suicidar-me. Por curiosidade, pretendo continuar vivendo.
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