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"MEMENTO MORI"
Autora escocesa cria fábula perturbadora sobre a morte
MARCELO PEN
FREE-LANCE PARA A FOLHA
"Lembre-se de que vai
morrer." A frase, dita em
telefonemas anônimos, repete-se
inúmeras vezes neste romance de
Muriel Spark. Trata-se da tradução de uma saudação dos monges
trapistas; em latim, "memento
mori".
O leitor não deve confundir
com o conto "Memento Mori", de
Jonathan Nolan, no qual se baseou o cultuado filme "Amnésia",
até porque a fábula descrita por
Spark é muito mais real, densa e
perturbadora. Além disso, tem
humor -o que falta no conto e
no filme.
O argumento é simples. Temos
esses senhores e senhoras ingleses, na faixa dos 80 anos, aparentemente muito respeitáveis, que
começam a receber estranhos telefonemas. O interlocutor só diz a
frase monacal e desliga. A polícia
investiga e não descobre nada.
Acha que pode se tratar de uma
alucinação coletiva.
O inspetor aposentado Henry
Mortimer é chamado para o caso.
Ele reúne o grupo em sua casa. O
problema é que cada um imagina
ter ouvido um interlocutor diferente: um homem mais velho, um
rapaz, um estrangeiro. A única
constante é a frase "lembre-se de
que vai morrer".
Pouco antes, Mortimer confidenciara à mulher que acreditava
que o culpado era "a Morte em
pessoa". O investigador filosofa:
"A morte, quando se aproxima,
não deveria pegar ninguém de
surpresa. Sem o sentido sempre
presente da morte, a vida é insípida. É como viver só da clara do
ovo."
Longe de ser insípida, porém, a
vida dos personagens de "Memento Mori" parece tomada por
uma mundanalidade atroz. No
grupo, há desde governantas
chantagistas até assistentes sociais
envolvidas em bigamia.
O velho solteirão Alec Warner
anota tudo em fichas. Ele mesmo
não se acanha em semear a discórdia para conseguir mais dados
para suas pesquisas geriátricas. E
não, ele não é o culpado, pois também recebe os telefonemas anônimos.
Spark sabe extrair humor das
fraquezas humanas, dos pequenos e grandes crimes que cometemos no dia-a-dia. A ironia se intensifica quando essas mesquinharias são confrontadas com o
sentido por trás das palavras do
criminoso, quando as preocupações comezinhas são açuladas pela decrepitude e pela morte.
Podemos distinguir dois planos
narrativos em "Memento Mori".
O primeiro é o nível cômico, de
sátira social; o segundo, metafísico, de caráter mais solene. No primeiro, os personagens acreditam
ser senhores de seu destino. No
segundo, percebemos que o destino é muito mais amplo e que poucos entendem o seu significado.
Os telefonemas pretendem
acordar os personagens para o segundo plano, mas, na maioria das
vezes, falham. Eles relutam em
perceber a esfera mais dilatada da
existência, sugerida, em "Memento Mori", pela morte.
Jean Taylor, ex-dama de companhia, parece ser a mais lúcida
de todos. "Ter mais de 70 anos",
diz ela, "é como estar em guerra.
Todos os nossos amigos estão indo ou se foram, e nós sobrevivemos entre os mortos e os moribundos, no meio de um campo de
batalha."
O campo de batalha de Jean é
uma clínica do governo. Ela compartilha da enfermaria com uma
dúzia de outras senhoras idosas.
O grupo senil grita, chora, assusta
as visitas. Alec chega a aconselhar
Jean a mudar-se para uma clínica
particular. Ela rejeita a idéia e
lembra que aquelas mulheres representam o seu "memento mori". Não há saída. Lembremo-nos
de que vamos morrer.
Memento Mori
Autor: Muriel Spark
Tradutora: Beth Vieira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28 (256 págs.)
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