São Paulo, sábado, 22 de setembro de 2001

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"MEMENTO MORI"

Autora escocesa cria fábula perturbadora sobre a morte

MARCELO PEN
FREE-LANCE PARA A FOLHA

"Lembre-se de que vai morrer." A frase, dita em telefonemas anônimos, repete-se inúmeras vezes neste romance de Muriel Spark. Trata-se da tradução de uma saudação dos monges trapistas; em latim, "memento mori".
O leitor não deve confundir com o conto "Memento Mori", de Jonathan Nolan, no qual se baseou o cultuado filme "Amnésia", até porque a fábula descrita por Spark é muito mais real, densa e perturbadora. Além disso, tem humor -o que falta no conto e no filme.
O argumento é simples. Temos esses senhores e senhoras ingleses, na faixa dos 80 anos, aparentemente muito respeitáveis, que começam a receber estranhos telefonemas. O interlocutor só diz a frase monacal e desliga. A polícia investiga e não descobre nada. Acha que pode se tratar de uma alucinação coletiva.
O inspetor aposentado Henry Mortimer é chamado para o caso. Ele reúne o grupo em sua casa. O problema é que cada um imagina ter ouvido um interlocutor diferente: um homem mais velho, um rapaz, um estrangeiro. A única constante é a frase "lembre-se de que vai morrer".
Pouco antes, Mortimer confidenciara à mulher que acreditava que o culpado era "a Morte em pessoa". O investigador filosofa: "A morte, quando se aproxima, não deveria pegar ninguém de surpresa. Sem o sentido sempre presente da morte, a vida é insípida. É como viver só da clara do ovo."
Longe de ser insípida, porém, a vida dos personagens de "Memento Mori" parece tomada por uma mundanalidade atroz. No grupo, há desde governantas chantagistas até assistentes sociais envolvidas em bigamia.
O velho solteirão Alec Warner anota tudo em fichas. Ele mesmo não se acanha em semear a discórdia para conseguir mais dados para suas pesquisas geriátricas. E não, ele não é o culpado, pois também recebe os telefonemas anônimos.
Spark sabe extrair humor das fraquezas humanas, dos pequenos e grandes crimes que cometemos no dia-a-dia. A ironia se intensifica quando essas mesquinharias são confrontadas com o sentido por trás das palavras do criminoso, quando as preocupações comezinhas são açuladas pela decrepitude e pela morte.
Podemos distinguir dois planos narrativos em "Memento Mori". O primeiro é o nível cômico, de sátira social; o segundo, metafísico, de caráter mais solene. No primeiro, os personagens acreditam ser senhores de seu destino. No segundo, percebemos que o destino é muito mais amplo e que poucos entendem o seu significado.
Os telefonemas pretendem acordar os personagens para o segundo plano, mas, na maioria das vezes, falham. Eles relutam em perceber a esfera mais dilatada da existência, sugerida, em "Memento Mori", pela morte.
Jean Taylor, ex-dama de companhia, parece ser a mais lúcida de todos. "Ter mais de 70 anos", diz ela, "é como estar em guerra. Todos os nossos amigos estão indo ou se foram, e nós sobrevivemos entre os mortos e os moribundos, no meio de um campo de batalha."
O campo de batalha de Jean é uma clínica do governo. Ela compartilha da enfermaria com uma dúzia de outras senhoras idosas. O grupo senil grita, chora, assusta as visitas. Alec chega a aconselhar Jean a mudar-se para uma clínica particular. Ela rejeita a idéia e lembra que aquelas mulheres representam o seu "memento mori". Não há saída. Lembremo-nos de que vamos morrer.


Memento Mori
    
Autor: Muriel Spark
Tradutora: Beth Vieira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28 (256 págs.)




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