São Paulo, sábado, 22 de setembro de 2001

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"GOTA D'ÁGUA"

Diretor encena fragmentos de textos de Chico Buarque e Heiner Müller comprometendo trabalho de equipe

Villela faz da peça uma impos tura kitsch

Jefferson Coppola/Folha Imagem
Cena da montagem do texto "Gota d' Água", de Chico Buarque e Paulo Pontes, uma releitura feita pelo diretor Gabriel Villela, que está em cartaz no Tom Brasil, em SP


SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Partindo "da obra de Chico Buarque e Paulo Pontes", Villela acumula referências. A peça transpõe antiguidade clássica para o Rio de hoje? Situe-se a peça na rampa do Palácio do Planalto, com atores declamando sem se olhar, imitando vasos gregos, com um coro minuciosamente coreografado como uma embalagem de luxo. A peça é de denúncia social? Crie-se uma favela de camas hospitalares, que rouba luz dos postes e cultua orixás sincréticos. Eurípedes propõe o arquetípico conflito entre o masculino e o feminino? Sejam dados bacias para as mulheres e tacos de bilhar para os homens, e todo o subtexto virá à tona.
O texto em si desaparece? Reincorpore-se Chico por meio de canções extras, já que a casa é de shows e há atrizes que cantam bem, omitindo-se que Chico, em peças, romances ou canções, é antes de tudo um contador de histórias. Populista demais? Acrescente a pós-modernidade de Heiner Müller, em citações de "Medeamaterial". Alemão demais? Simulem-se coitos grotescos, em "homenagem" a Pasolini.
Perdido em meio à profusão de direções apontadas, Villela acaba por mostrar apenas a ponta de seu dedo. Mesmo a intenção alegada de proselitismo social, de "exercício cívico", logo se dispersa para poder conquistar a platéia do Tom Brasil que, regada a uísque, aplaude cópulas e agudos. A esse sincrético oportunismo Villela chama de "desconstrução".
Para poder usar o conceito, e poder propor sua versão de Medéia, sem se apoiar em outros nomes, Villela precisaria conquistar um ponto de vista próprio mais claro. Recomenda-se então a leitura aprofundada de autores que fazem isso, como por exemplo de Müller em "Medeamaterial" e Chico Buarque em "Gota d'Água" -de preferência antes de encenar fragmentos deles de forma dispersa, comprometendo o excelente trabalho de sua equipe.
Babaya nos arranjos vocais, Serroni no cenário são sempre competentes. Ricardo Rizzo sustenta suas apostas em uma limpeza de movimentos que se estrutura em muitos anos de prática de artes marciais, segurança que soube transmitir ao elenco.
O mesmo não fez Villela, que deixa o ator abandonado aos seus próprios recursos. Desperdiça-se assim Cleide Queiroz, que deve sacrificar sua vivência profunda de Joana a marcações externas e decorativas. Jorge Emil imposta a voz de crooner e só; e Leonardo Diniz, já na estréia, procurava conquistar a platéia fazendo com a língua imitações de cobra.
A montagem poderia ser vista como um saudável deboche iconoclasta, se o esforço de Villela em impor sua genialidade não lhe tolhesse o humor. Mais que uma "desconstrução", que demanda um maior embasamento intelectual, Villela é mais honesto ao se inserir no universo kitsch, com seus simulacros pífios e histérico acúmulo de referências.
O embaraçoso é que subentende-se assim que a obra de Chico Buarque é algo como um pinguim de geladeira cujo valor artístico se deve à ousadia de quem o expõe deslocado de seu contexto. Parece ser esse, aliás, o espírito das últimas três montagens de Villela: "A Ópera do Malandro", "Os Saltimbancos" e essa "Gota d'Água".
Opinião não compartilhada por quem pôde assistir às montagens originais, ou por quem lê os textos, tendo acesso assim a uma obra que, infelizmente, permanece distante para quem só a vê nessa "desconstrução". Ou seja: quem jamais esquece não pode reconhecer, quem não a conhece não pode mais ver para crer. E isso já pela terceira vez. Cuidado Chico: pode ser a gota d'água.


Gota d'Água
 
Texto: Chico Buarque e Paulo Pontes
Direção: Gabriel Villela
Com: Cleide Queiroz, Jorge Emil e outros
Onde: Tom Brasil (rua das Olimpíadas, 66, Vila Olímpia, SP, tel. 0/xx/11/3845-2326)
Quando: sex. e sáb., às 22h; dom., às 20h
Quanto: de R$ 25 a R$ 45




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