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crítica
"O Sr. Pip" celebra poder transformador
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
O clichê romântico de
que um livro pode
mudar a vida de alguém sobrevive na atualidade e se distorce, em dias de
crescente analfabetismo secundário, a ponto de tornar-se bastante conveniente.
Não é de todo desnecessário lembrar, entretanto, de
outro senso comum, justamente o de que uma só andorinha não faz verão: para
chegar a reinventar a vida, a
leitura deve ser ato contínuo
que se confunda com a própria vida. Essa é, para atingir
o osso da questão, a tese implícita de "O Sr. Pip", de
Lloyd Jones, romance finalista do Man Booker Prize
e zebra correndo por fora
para abocanhar o prêmio
deste ano.
"O Sr. Pip" é o primeiro livro de Jones publicado fora
de sua Nova Zelândia natal.
Narrado por Matilda, adolescente de 13 anos e habitante
da ilha de Bougainville, em
Papua Nova Guiné, conta a
história da pequena comunidade de pescadores em que
ela vive. Imersas em conturbada guerra civil ocorrida no
início dos anos 90, as pessoas
da região vêem-se subitamente em meio ao fogo
cruzado entre rebeldes negros (jovens "rambos" egressos da própria comunidade)
e "peles-vermelhas" (donos
do poder pertencentes a
outra etnia).
Abandonados pelos brancos australianos que exploravam os minérios na ilha e a
provinham, aos habitantes
nada mais resta, a não ser sobreviverem no paraíso em
chamas. Até que certo dia um
certo sr. Watts, único branco
remanescente em Bougainville, resolve fazer com que
parte das coisas volte ao normal, dando aulas às crianças.
Personagem inesquecível,
o sr. Watts merece um parágrafo apenas para si: chamado pelas crianças de "Olho
Arregalado" ("Pop Eye" no
original, apelido que deveria
ter sido mantido por motivos
óbvios), ele vive afastado da
vila, junto da enlouquecida
sra. Watts, a quem transporta numa espécie de liteira.
Nessas ocasiões, ele usa um
nariz de palhaço, substituído
por um terno ao serem iniciadas as aulas. É então que o
sr. Watts opera mudanças na
vila, lendo todos os dias às
crianças algumas páginas de
"Grandes Esperanças", o romance de Dickens, "o maior
escritor do século 19", de
acordo com ele.
E é assim que, aos poucos,
os meninos se apaixonam
por seu professor e também
pelo sr. Pip do título, típico
herói dickensiano a sobrepujar com sacrifícios e o auxílio
de milagres as vicissitudes da
vida na Inglaterra vitoriana.
Então surge o inominável,
a violência incontida narrada
sem sentimentalismos, direta e irrefreável como uma bala de fuzil. De repente, em
apenas uma longa cena, a
realidade mostra suas armas.
A imaginação já havia anteriormente instilado nos corações e mentes de Matilda e
dos habitantes de Bougainville, porém, as grandes esperanças que somente a literatura tem o poder de instilar,
aguçando o espírito humano,
atribuindo-lhe forma.
Homenagem ao poder
transformador da fábula e de
Dickens, "O Sr. Pip" é desses
livros mágicos que certamente fundará uma seita de
leitores devotos ao seu redor.
E é provável que ele -por
que não?- mude, sim, a vida
de uma pessoa. Ou de muitas.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa
da Palavra)
O SR. PIP
Autor: Lloyd Jones
Tradução: Léa Viveiros de Castro
Editora: Rocco
Quanto: R$ 34 (272 págs.)
Avaliação: ótimo
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