São Paulo, sábado, 22 de setembro de 2007

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crítica

"O Sr. Pip" celebra poder transformador

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

O clichê romântico de que um livro pode mudar a vida de alguém sobrevive na atualidade e se distorce, em dias de crescente analfabetismo secundário, a ponto de tornar-se bastante conveniente.
Não é de todo desnecessário lembrar, entretanto, de outro senso comum, justamente o de que uma só andorinha não faz verão: para chegar a reinventar a vida, a leitura deve ser ato contínuo que se confunda com a própria vida. Essa é, para atingir o osso da questão, a tese implícita de "O Sr. Pip", de Lloyd Jones, romance finalista do Man Booker Prize e zebra correndo por fora para abocanhar o prêmio deste ano.
"O Sr. Pip" é o primeiro livro de Jones publicado fora de sua Nova Zelândia natal. Narrado por Matilda, adolescente de 13 anos e habitante da ilha de Bougainville, em Papua Nova Guiné, conta a história da pequena comunidade de pescadores em que ela vive. Imersas em conturbada guerra civil ocorrida no início dos anos 90, as pessoas da região vêem-se subitamente em meio ao fogo cruzado entre rebeldes negros (jovens "rambos" egressos da própria comunidade) e "peles-vermelhas" (donos do poder pertencentes a outra etnia).
Abandonados pelos brancos australianos que exploravam os minérios na ilha e a provinham, aos habitantes nada mais resta, a não ser sobreviverem no paraíso em chamas. Até que certo dia um certo sr. Watts, único branco remanescente em Bougainville, resolve fazer com que parte das coisas volte ao normal, dando aulas às crianças.
Personagem inesquecível, o sr. Watts merece um parágrafo apenas para si: chamado pelas crianças de "Olho Arregalado" ("Pop Eye" no original, apelido que deveria ter sido mantido por motivos óbvios), ele vive afastado da vila, junto da enlouquecida sra. Watts, a quem transporta numa espécie de liteira. Nessas ocasiões, ele usa um nariz de palhaço, substituído por um terno ao serem iniciadas as aulas. É então que o sr. Watts opera mudanças na vila, lendo todos os dias às crianças algumas páginas de "Grandes Esperanças", o romance de Dickens, "o maior escritor do século 19", de acordo com ele.
E é assim que, aos poucos, os meninos se apaixonam por seu professor e também pelo sr. Pip do título, típico herói dickensiano a sobrepujar com sacrifícios e o auxílio de milagres as vicissitudes da vida na Inglaterra vitoriana.
Então surge o inominável, a violência incontida narrada sem sentimentalismos, direta e irrefreável como uma bala de fuzil. De repente, em apenas uma longa cena, a realidade mostra suas armas. A imaginação já havia anteriormente instilado nos corações e mentes de Matilda e dos habitantes de Bougainville, porém, as grandes esperanças que somente a literatura tem o poder de instilar, aguçando o espírito humano, atribuindo-lhe forma.
Homenagem ao poder transformador da fábula e de Dickens, "O Sr. Pip" é desses livros mágicos que certamente fundará uma seita de leitores devotos ao seu redor. E é provável que ele -por que não?- mude, sim, a vida de uma pessoa. Ou de muitas.


JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra)


O SR. PIP
Autor: Lloyd Jones
Tradução: Léa Viveiros de Castro
Editora: Rocco
Quanto: R$ 34 (272 págs.)
Avaliação: ótimo



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