São Paulo, quarta-feira, 22 de setembro de 2010

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MARCELO COELHO

Artes da sobrevivência


A vaia, que poderia ser mera manifestação de desagrado, transforma-se numa arma, num jogo


VI E revi, durante o mês passado, o documentário "Uma Noite em 67", de Renato Terra e Ricardo Calil, sobre o famoso festival de MPB da TV Record.
Eu tinha razões sentimentais para assistir ao filme mais de uma vez. Lembro-me, com alguma vergonha até, de acompanhar pelo rádio aquela noite, uivando numa torcida infantil contra "Beto Bom de Bola", o insucesso de Sérgio Ricardo.
Têm razão os críticos que consideraram muito "linear" o filme sobre o festival. As cenas da época se alternam com depoimentos atuais de seus protagonistas na sequência exata da premiação: Roberto Carlos em quinto lugar, Caetano em quarto, Chico Buarque em terceiro, Gilberto Gil em segundo, Edu Lobo em primeiro.
E Sérgio Ricardo, naturalmente. Ele explica sua atitude de quebrar o violão e jogá-lo sobre a plateia como algo típico de um "bicho acuado". Curiosamente, talvez porque tivessem desligado o microfone que captava de perto as reações do público, no documentário não se nota um ambiente tão ensurdecedor assim; pelo menos não há vaias o tempo todo no momento da apresentação.
A hostilidade, é claro, era completa. E a música, não há como negar, era feia de fato. Para além do desconforto, rever a cena tem muito de instrutivo.
Sérgio Ricardo tentava aplacar o público; os lábios sorriam, mas o olhar era de ódio. Cada intervenção sua, antes de começar a cantar, mereceria ser estudada como uma aula de como suicidar-se politicamente.
O paralelo mais próximo me parece ser o de Danton, no filme de Andrzej Wajda, tentando conquistar a Assembleia Nacional que, no final de seu discurso, votará maciçamente a favor de levá-lo à guilhotina.
A "virtù", misto de ousadia e prudência, esvai-se a cada segundo. Há uma hesitação entre pedir apoio da plateia e enfrentá-la de uma vez. Entre fazer-se de coitadinho e comportar-se como herói.
A raiva se volta até contra quem aplaude; o tempo gasto em explicações aumenta a impaciência do público; e a vaia, que poderia ser mera manifestação de desagrado, transforma-se numa arma, no jogo de ver o quanto a vítima aguenta antes de cair do banco em que se equilibra.
Obviamente, naquela época de autoritarismo político, a plateia estava ansiosa por recuperar a "voz ativa" que, na letra de Chico Buarque cantada na mesma noite, tinha sido levada embora pela direita militar.
Em todo caso, se política e ideologia fossem tudo, as vaias maiores haveriam de se destinar às guitarras elétricas de Caetano e Gil. Até que surgiam, quando o locutor Blota Júnior anunciava os concorrentes. Mas a música venceu as resistências.
Talvez por isso, nos depoimentos filmados hoje em dia, Caetano e Gil pareçam mais "vitoriosos" do que os outros vencedores da noite. Notei certo desinteresse, certa amargura até, em Edu Lobo e Chico Buarque.
É como se todas as emoções daquela noite, que no documentário vemos lindamente aflorando nos olhos daqueles rostos jovenzíssimos, fossem coisa de que não se querem recordar; parecem ter certa ingratidão com o próprio passado.
Uma explicação é a de que se sabiam instrumentos, peças de uma empreitada comercial; Edu Lobo diz que se sentia como um cavalo de corrida com as apostas em torno do resultado da premiação.
Caetano Veloso e Gilberto Gil hoje não se importam tanto, pelo que se vê nos depoimentos, com o jogo que estava sendo encenado -embora, na época, tivessem mais razão do que seus concorrentes para se sentir em pânico.
De qualquer forma (a menos que todo o episódio tenha sido encenado também), Sérgio Ricardo foi o único a não perceber plenamente que tudo era um jogo, um espetáculo, um concurso afinal.
Quando eu era criança, costumava chorar quando assistia aos shows de luta livre. Não me conformava com a vitória dos vilões. Ai de quem me dissesse que tudo era uma farsa. Pior se, brincando de Banco Imobiliário ou no futebol de botão, me consolassem dizendo que era só um jogo.
Danton e Robespierre não estavam brincando em 1794; mas eu não brincava em 1967. Nenhuma criança brinca, aliás, quando está brincando. Que sobreviva, pensando bem, eis um verdadeiro milagre.

coelhofsp@uol.com.br


AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris




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