São Paulo, Sexta-feira, 22 de Outubro de 1999
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O projeto ética do Ira!


Banda volta ao mercado, depois de período independente, com "Isso É Amor", disco dedicado a reinterpretações de artistas e grupos mal adaptados ao sistema fonográfico


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local


São 18 anos de carreira, desde o estouro da geração rock no Brasil dos anos 80, passando pela decadência relativa no início dos 90, até chegar à revalorização anunciada nos novos dias. Ponta ética de todas essas ondulações, a banda paulistana Ira! reemerge envolta, uma vez mais, num projeto de explícitos contornos éticos.
"Isso É Amor", seu nono álbum, é o primeiro empreendimento revisionista do quarteto, mas foge pela tangente ao reinterpretar canções de um elenco disforme, mas quase homogêneo em quesitos extramusicais.
Regravando, por ordem alfabética, Dalto, Gang 90, Legião Urbana, Julinho da Adelaide (na verdade Chico Buarque, escondido sob pseudônimo nos 70 para fugir à censura), Lô Borges, Lobão, o espanhol Ray Heredia, Ritchie, Ronnie Von, Tim Maia e Wander Wildner (ex-líder da banda gaúcha Replicantes) -além do próprio Ira! e de seu guitarrista, Edgard Scandurra, em fase solo-, a banda opta por um circuito de artistas ou circunstâncias de inadequação às pressões e aos esquemas do mercado fonográfico.
"É um disco de autores não óbvios, como Ritchie, Dalto, Lô Borges, Lobão", define o vocalista Nasi. Eles admitem uma marca ética nas escolhas. Edgard: "Na axé 99% é chato, no pagode também, até no rock 99% é chato. A gente vai ficar de fora? Podemos brigar com esses merdas, colocar um pouco de dignidade nisso".
Tenta exemplificar: "Ritchie tem uma história nebulosa que o fez sumir do mapa após um sucesso gigantesco. Algo de podre aconteceu, queimou o filme dele. Só o fato de ele dar um basta na música e estar fazendo sites chocantes o deixa nesse caminho".
""Sentado à Beira do Caminho", embora seja de Roberto e Erasmo Carlos, é do Erasmo, do repertório dele", diz Nasi, justificando a presença do "rei". Edgard se mete: "Sou fã dele, já pedi mil vezes -embora nunca tenha falado com ele- que volte a fazer rock".
Passando pelo crivo ético, dizem que houve, sim, vetos a autores -que eles não mencionam.
Entre os testados, que acabaram sobrando na seleção das faixas, enumeram Secos & Molhados, Zélia Duncan, Guilherme Arantes, Wanderléa e até Lulu Santos.
Adequam os convidados, Fernanda Takai e Samuel Rosa, ao perfil ético. "São legais, não rola estrelismo. Se fossem estrelas não participariam", diz Edgard.
Para voltar ao grande mercado -os dois discos anteriores o Ira! só pudera lançar por via marginal às grandes gravadoras-, o grupo pendeu entre duas gravadoras "emergentes" situadas em São Paulo, Abril e Trama.
Venceu a primeira -a mesma que capitaneia a estratégia de relançar bandas dos 80 como Ultraje a Rigor e Capital Inicial-, porque, segundo a banda, a Trama não dispunha de cronograma para colocá-los em estúdio e queria um disco ao vivo, talvez acústico.
"Nos encontrávamos numa encruzilhada de execução limitada da nossa música, e queimando os clássicos do Ira! estaríamos de novo nesse mesmo roteiro", diz o baterista André Jung.
Embora a Abril venha adotando perfil comercial/popular, o projeto, após um desinteresse inicial e, em seguida, o relativo sucesso de Ultraje a Rigor e Capital Inicial, foi aceito sem restrições. Com Ritchie e Roberto no cardápio, a gravadora optou pela pouco conhecida "Bebendo Vinho", de Wildner, como faixa de trabalho.
"A única interferência foi em "Telefone", da Gang 90. Íamos fugir mais do original. João Augusto, o diretor artístico, falava que estávamos mexendo muito com a música de um cara que nem está mais vivo. No fim, ficou a preferida de todo mundo", diz Edgard.
"Houve interferência da gravadora logo no começo, de excluir o underground paulista do repertório", desmente o baixista Ricardo Gaspa. "Admitirmos alguma interferência é um sinal de amadurecimento. Antigamente não concordaríamos com nenhuma sugestão", entra Nasi.
André retorna: "Não houve nenhuma zona de atrito, foi bom para nós. Numa grande gravadora, entraríamos para ser a sexta, a sétima banda. Aqui, somos tratados como prioridade".
"É o tratamento que a gente merece há muito tempo", completa Edgard. "Mas isso aconteceu mais após eles conhecerem o resultado do disco", interpõe Gaspa.
A volta ao mercado parece entusiasmar a banda. "É a reconquista de um espaço que pertence à gente. No monte Olimpo da MPB há um lugar para o Ira!, e a gente nunca tentou nem escalar. Se o comercial ao extremo está dominando, cabe a nós, banda de rock, brigar de igual para igual com esses outros artistas. É a vez do Ira!", segue Edgard.
Falando em comercialismo, a banda recua em relação a "Você Não Sabe Quem Eu Sou" (98), álbum que se embrenhou em áreas da eletrônica que têm interessado especificamente a Edgard.
"A recepção do público àquele disco me deixou decepcionado. A facção xiita dos fãs foi dose, a ponto de pessoas saírem no meio do show achando que viramos tecno", relata Edgard. "Talvez agora saiam do show quando ouvirem Ritchie", brinca Nasi. "Depois dos flamencos que Edgard nos fez ouvir, aqueles bate-estacas são até relaxantes", provoca André.
Na conclusão, a banda não foge da raia de se comparar aos companheiros de geração Titãs, prestes a lançar "As Dez Mais", com Mamonas Assassinas (música de trabalho), Legião, Roberto e Erasmo, Lulu Santos, Ultraje a Rigor, Mutantes, Inocentes, os portugueses Xutos e Pontapés, Raul Seixas e Tim Maia no cardápio.
"Isso é clássico de banda de rock, é normal fazermos mais ou menos ao mesmo tempo. Foda-se, vai ser a volta da rivalidade entre Ira! e Titãs", diz Nasi.
"Eles são uma empresa. Nossa ambição é menor, mostrar nossa cara de novo ao Brasil", termina André, um ex-titã. Ao ringue.


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