São Paulo, Sexta-feira, 22 de Outubro de 1999
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GASTRONOMIA
E quem emagrece é o porco

NINA HORTA
Colunista da Folha

Os porcos sempre estiveram em evidência, inclusive na mídia. Quem não se lembra da perseverança dos três porquinhos contra o lobo, dos porcos corruptos de Orwell, da Miss Piggy e agora de Babe, o porco pastor?
Os jornais londrinos deram página inteira a dois leitões que fugiram do matadouro perto do rio Avon. E foi pelo rio que tomaram distância de seus perseguidores, nadando, arfantes, pequenos focinhos fora d'água.
Confusos, sem rumo, foram se aproximando da casa de campo do príncipe Charles. Foi então que toda a Inglaterra se solidarizou com eles.
-"Dá-lhes, leitões!", gritava a torcida contra os helicópteros e cães farejadores. Apareceram logo milhares de ofertas de abrigos, de refúgios de liberdade, de sociedades protetoras de animais.
Agora, convenhamos, fora dos jornais, no dia-a-dia do churrasco, do lombinho com farofa, todos nós já percebemos que não se fazem porcos como antigamente. Estão ruins. Tiraram-lhes a gordura em nome da saúde do consumidor, mas o único que emagreceu foi o porco. Arrancaram dele seus veios de mármore de banha e foram-se embora o sabor e a suculência. Assa-se um lombo e ele é uma ode à sola de sapato chaplinesca. O novo porco é ruim.
São cruzados para nascerem esbeltos como topmodels. Comem o que não lhes apetece. São confinados em galpões fétidos sem janelas e com ventiladores. Estressam-se no transporte e na hora da morte, amém.
Um pesquisador sueco condoeu-se dos porcos e quis levá-los de volta (com todas as preocupações científicas de rigor e de saúde dos animais) ao mato para ver como se comportavam na terra de seus ancestrais. Descobriu que seus instintos estavam intactos. Corriam, brincavam, descolavam sua própria comida, construíam seus ninhos forrados de capim. Tinham uma certa "nostalgie de la boue", isto é, gostavam de lama, pois não suam pela pele e precisam refrescar o corpo a toda hora. Moral da história, comportaram-se porcinamente bem.
Os que cuidavam deles também melhoraram de saúde e de humor ao se verem ao ar livre. Porco feliz, carne boa, criador feliz, consumidor feliz, raciocinaram. Começaram a utilizar tudo o que fora aprendido de novas técnicas, só que junto da natureza. Quanto às normas dietéticas de saúde, optaram por um slogan -"Comam menos, mas comam bem."
Há experiências de todos os tipos. No fim dos anos 80, os barrigudos porcos vietnamitas entraram em moda na Califórnia e na Inglaterra como bichinhos de estimação. Eram chamados de porcos de bolso e faziam até jogging com os donos. Acontece que os donos se esqueceram que seus bebês inevitavelmente chegariam a 500 quilos. Não tinham modos à mesa e fuçavam trufas sob os guardanapos e toalhas de linho. Não funcionaram como pets convencionais. Muito gordos e cheios de idéias. A quem culpar pela má qualidade do porco? Prendam os culpados de sempre.
A produção em larga escala quer qualidade mediana e preço mediano para alcançar o maior mercado possível. É a busca do lucro máximo a curto prazo. O porco é só um produto a mais.
O porco não é só um produto a mais, no entanto. É uma obra de arte inventada por um deus guloso, uma divina construção, um clássico, um raro, um único. O nosso porco primordial está sendo editado, cortado, sujeito a efeitos especiais, globalizado, vitimizado pelo marketing, pelos interesses individuais do comércio.
Não existem resistências culturais fundadas na defesa de obras universais (como o porco)? Museus, cinematecas, pinacotecas, "cahiers"? Como se salvaram os Da Vinci e os Picassos e os Michelangelos? Como se salvar esta obra de arte única que é o porco?
Deve haver um jeito. Uma política de investimentos econômicos nos pequenos produtores e seus produtos de qualidade. A formação de mercados de fazendeiros, como vi no próprio coração de Nova York, onde o criador fica cara a cara, focinho a focinho com o consumidor. Ouve as críticas sobre sua obra de arte, sobre seu porco saudável, gorducho. Não dá conta dos pedidos dos bons restaurantes liderados por Alice Waters, a dona do Chez Panisse que não faz outra coisa na vida do que procurar comida excepcional para seus clientes.
E os supermercados poderosos começam a ver lucro neste porco bom e o entronizam num nicho, um pouco mais caro, é claro, mas com um sorriso de porco feliz nas etiquetas das embalagens.
"Dá-lhes, leitão", seja o nosso grito de guerra.
Para mais informações sobre assuntos de comidas e de porcos assinar a revista "The Art of Eating", de Edward Behr, nº 51 (www.artofeating.com).
Ver Pierre Bourdieu na Folha, caderno Mais!, 17 de outubro, em "Bourdieu desafia a mídia internacional".

E-mail: ninahort@uol.com.br


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