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GASTRONOMIA
E quem emagrece é o porco
NINA HORTA
Colunista da Folha
Os porcos sempre estiveram em evidência,
inclusive na mídia. Quem
não se lembra da perseverança
dos três porquinhos contra o
lobo, dos porcos corruptos de
Orwell, da Miss Piggy e agora de Babe, o porco pastor?
Os jornais londrinos deram página inteira a dois
leitões que fugiram do
matadouro perto do rio
Avon. E foi pelo rio que
tomaram distância de
seus perseguidores, nadando, arfantes, pequenos
focinhos fora d'água.
Confusos, sem rumo, foram se aproximando da casa
de campo do príncipe Charles. Foi então que toda a Inglaterra se solidarizou com
eles.
-"Dá-lhes, leitões!", gritava a torcida contra os helicópteros e cães farejadores.
Apareceram logo milhares de
ofertas de abrigos, de refúgios
de liberdade, de sociedades protetoras de animais.
Agora, convenhamos, fora dos
jornais, no dia-a-dia do churrasco, do lombinho com farofa, todos nós já percebemos que não
se fazem porcos como antigamente. Estão ruins. Tiraram-lhes a gordura em nome da
saúde do consumidor, mas o
único que emagreceu foi o
porco. Arrancaram dele seus
veios de mármore de banha e foram-se embora o sabor e a suculência. Assa-se um lombo e ele é
uma ode à sola de sapato chaplinesca. O novo porco é ruim.
São cruzados para nascerem esbeltos como topmodels. Comem
o que não lhes apetece. São confinados em galpões fétidos sem janelas e com ventiladores. Estressam-se no transporte e na hora da
morte, amém.
Um pesquisador sueco condoeu-se dos porcos e quis levá-los
de volta (com todas as preocupações científicas de rigor e de saúde
dos animais) ao mato para ver como se comportavam na terra de
seus ancestrais. Descobriu que
seus instintos estavam intactos.
Corriam, brincavam, descolavam
sua própria comida, construíam
seus ninhos forrados de capim.
Tinham uma certa "nostalgie de
la boue", isto é, gostavam de lama,
pois não suam pela pele e precisam refrescar o corpo a toda hora.
Moral da história, comportaram-se porcinamente bem.
Os que cuidavam deles também
melhoraram de saúde e de humor
ao se verem ao ar livre. Porco feliz,
carne boa, criador feliz, consumidor feliz, raciocinaram. Começaram a utilizar tudo o que fora
aprendido de novas técnicas, só
que junto da natureza. Quanto às
normas dietéticas de saúde, optaram por um slogan -"Comam
menos, mas comam bem."
Há experiências de todos os tipos. No fim dos anos 80, os barrigudos porcos vietnamitas entraram em moda na Califórnia e na
Inglaterra como bichinhos de estimação. Eram chamados de porcos de bolso e faziam até jogging
com os donos. Acontece que os
donos se esqueceram que seus bebês inevitavelmente chegariam a
500 quilos. Não tinham modos à
mesa e fuçavam trufas sob os
guardanapos e toalhas de linho.
Não funcionaram como pets convencionais. Muito gordos e cheios
de idéias. A quem culpar pela má
qualidade do porco? Prendam os
culpados de sempre.
A produção em larga escala
quer qualidade mediana e preço
mediano para alcançar o maior
mercado possível. É a busca do lucro máximo a curto prazo. O porco é só um produto a mais.
O porco não é só um produto a
mais, no entanto. É uma obra de
arte inventada por um deus guloso, uma divina construção, um
clássico, um raro, um único. O
nosso porco primordial está sendo editado, cortado, sujeito a efeitos especiais, globalizado, vitimizado pelo marketing, pelos interesses individuais do comércio.
Não existem resistências culturais fundadas na defesa de obras
universais (como o porco)? Museus, cinematecas, pinacotecas,
"cahiers"? Como se salvaram os
Da Vinci e os Picassos e os Michelangelos? Como se salvar esta
obra de arte única que é o porco?
Deve haver um jeito. Uma política de investimentos econômicos
nos pequenos produtores e seus
produtos de qualidade. A formação de mercados de fazendeiros,
como vi no próprio coração de
Nova York, onde o criador fica cara a cara, focinho a focinho com o
consumidor. Ouve as críticas sobre sua obra de arte, sobre seu
porco saudável, gorducho. Não
dá conta dos pedidos dos bons
restaurantes liderados por Alice
Waters, a dona do Chez Panisse
que não faz outra coisa na vida do
que procurar comida excepcional
para seus clientes.
E os supermercados poderosos
começam a ver lucro neste porco
bom e o entronizam num nicho,
um pouco mais caro, é claro, mas
com um sorriso de porco feliz nas
etiquetas das embalagens.
"Dá-lhes, leitão", seja o nosso
grito de guerra.
Para mais informações sobre
assuntos de comidas e de porcos
assinar a revista "The Art of Eating", de Edward Behr, nº 51
(www.artofeating.com).
Ver Pierre Bourdieu na Folha,
caderno Mais!, 17 de outubro, em
"Bourdieu desafia a mídia internacional".
E-mail: ninahort@uol.com.br
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