São Paulo, terça-feira, 22 de outubro de 2002

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FERNANDO BONASSI

A importância de receber bem

Quarta-feira , dez horas. Carandiru, campo de futebol do oito. Um jogo de malandro velho e sem importância pro campeonato... O funcionário sabia disso, mas, quando o negócio era entre pavilhões, havia de ter um olho na bola e outro na arquibancada.
Ainda tinha as visitas... Sempre esses curiosos entrando sem pagar ingresso "no zoológico". Perto da mesa do representante, um sujeito que se apresentara como roteirista de cinema. Disse que ia escrever um tal filme sobre a cadeia e que queria porque queria conhecer o cotidiano do lugar. Dentro do campo, mais três "convidados": um juiz e dois bandeirinhas, integrantes do quadro de árbitros da Federação Paulista de Futebol. Desses, o propósito era mais nobre: faziam parte de um grupo de voluntários que vinha apitar os jogos do campeonato interno nos seus dias de folga.
Todos ali: o funcionário, os quatro PMs vigiando da muralha, os perto de 850 malandros que se reuniam naquele poeirão e, quem sabe?, até o roteirista de cinema, o juiz e os bandeirinhas, conheciam a importância de receber bem. Todos sabiam que, quando uma visita aparece em nossa casa, ela deve ser tratada não apenas com respeito, porque isso é o mínimo, mas também com amizade, deferência e cuidado. Uma discussão? Jamais uma visita deve testemunhá-la. Ainda que a família esteja querendo os olhos uns dos outros, nada dessas intenções devem ser percebidas por aqueles que nos dão o prazer da presença... Mas Serginho Larica não sabia disso.
Serginho Larica, aos 27 anos, estava na sexta entrada por tráfico. História longa. Comum. Primeiro caiu na besteira de vender; depois na de usar e, por último, na pior delas: dever. Sair da rua não deixou de ser um alívio, embora não estivesse num lugar onde certas dívidas não pudessem ser cobradas com juros e correção.
A honra de apresentar a bola coube ao funcionário. Isso depois de convocar o time "da casa" e trazer os 11 jogadores mais o treinador do pavilhão nove, com prontuários conferidos e autorizações em ordem.
O juiz deixou que uns e outros se acostumassem às ondulações do terreno, que não eram pequenas. Depois chamou os capitães, fez o sorteio e, rapidamente, jogadores e audiência se posicionaram.
Os primeiros 15 minutos foram meio emporcalhados. Bola de barriga e espirradas pra cá e pra lá não animaram muita gente... Mas aos poucos os pés foram entrando em forma, as tabelas evoluíram, os times relaxaram, se espalharam e começaram a aparecer as chances de gol.
Numa dessas, um lançamento encontrou Serginho Larica livre. A bola pingou na altura exata para que ele enchesse o pé, pegando de peito, e a mandasse queimando para a rede. Acontece que a liberdade da posição de Serginho Larica tinha a ver com o fato de estar impedido. Ou pelo menos assim entenderam o bandeirinha, que ergueu o braço, e o juiz, que anulou o gol.
Serginho Larica não pode aceitar a marcação. Pegou a bola e jogou na direção do bandeirinha. Um silvo de reprovação emergiu num instante das laterais do campo. O juiz, sem perceber o desgosto da torcida, botou Serginho Larica para fora. Um cartão vermelho que ele nem viu, porque virou as costas, falou uns palavrões e se mandou pavilhão adentro.
O jogo não deu em coisa melhor até o final do primeiro tempo. No intervalo cada um dos times se recolheu embaixo de uma trave, para que os treinadores trabalhassem com os jogadores. Havia uma certa eletricidade que partia do grupo do oito, chegava até o pavilhão onde Serginho Larica tinha entrado batendo o pé e voltava aos homens agitados.
Só o funcionário reparou nisso. Achou melhor nem pensar e ficou quieto.
Não adiantou. O segundo tempo ia pelo décimo minuto, quando Serginho Larica apareceu tremendo e cochichou no ouvido dele. O funcionário coçou a barba e tomou uma atitude drástica, interrompendo a partida. Pegou Serginho Larica pela mão e o levou até o juiz. O preso nem esperou:
- Seu Juiz, gostaria de pedir desculpas...
O juiz, que entendia tanto o que se passava quanto o tal roteirista, não sabia o que desculpar. Afinal, jogo é jogo e o que acontece em campo nele acaba. Mas Serginho Larica insistia. Muito:
- Eu preciso que o senhor me desculpe... Olha... Eu preciso mesmo!
Então uma voz anônima ecoou no meio da malandragem:
- O problema é ele não receber bem as visitas. Quem é assim não fica no nosso meio.
O juiz não precisou de muita experiência no ambiente para entender a súbita importância do seu perdão. Nervoso, perdoou logo. Bem alto, para que todo mundo (especialmente a "voz anônima") ouvisse.
É certo que "a voz" sentiu sua melhor moral reestabelecida, pois, mal o jogo recomeçou, ela tornou a ecoar, dessa vez num tom menos grave:
- Tá cancelada a encomenda!
Então a maioria se tranquilizou, pois ninguém ia ter o dia estragado pelo que vissem do que era possível fazer com um homem que não conhece a importância de receber bem as visitas em casa.
(PS.: O jogo acabou zero a zero mesmo, mas ali ninguém teve dúvida de que Serginho Larica foi quem saiu ganhando.)


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