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FERNANDO BONASSI
A importância de receber bem
Quarta-feira , dez horas.
Carandiru, campo de futebol do oito. Um jogo de malandro
velho e sem importância pro campeonato... O funcionário sabia
disso, mas, quando o negócio era
entre pavilhões, havia de ter um
olho na bola e outro na arquibancada.
Ainda tinha as visitas... Sempre
esses curiosos entrando sem pagar ingresso "no zoológico". Perto
da mesa do representante, um sujeito que se apresentara como roteirista de cinema. Disse que ia escrever um tal filme sobre a cadeia
e que queria porque queria conhecer o cotidiano do lugar. Dentro do campo, mais três "convidados": um juiz e dois bandeirinhas,
integrantes do quadro de árbitros
da Federação Paulista de Futebol.
Desses, o propósito era mais nobre: faziam parte de um grupo de
voluntários que vinha apitar os
jogos do campeonato interno nos
seus dias de folga.
Todos ali: o funcionário, os quatro PMs vigiando da muralha, os
perto de 850 malandros que se
reuniam naquele poeirão e, quem
sabe?, até o roteirista de cinema, o
juiz e os bandeirinhas, conheciam
a importância de receber bem.
Todos sabiam que, quando uma
visita aparece em nossa casa, ela
deve ser tratada não apenas com
respeito, porque isso é o mínimo,
mas também com amizade, deferência e cuidado. Uma discussão?
Jamais uma visita deve testemunhá-la. Ainda que a família esteja querendo os olhos uns dos outros, nada dessas intenções devem
ser percebidas por aqueles que
nos dão o prazer da presença...
Mas Serginho Larica não sabia
disso.
Serginho Larica, aos 27 anos, estava na sexta entrada por tráfico.
História longa. Comum. Primeiro
caiu na besteira de vender; depois
na de usar e, por último, na pior
delas: dever. Sair da rua não deixou de ser um alívio, embora não
estivesse num lugar onde certas
dívidas não pudessem ser cobradas com juros e correção.
A honra de apresentar a bola
coube ao funcionário. Isso depois
de convocar o time "da casa" e
trazer os 11 jogadores mais o treinador do pavilhão nove, com
prontuários conferidos e autorizações em ordem.
O juiz deixou que uns e outros
se acostumassem às ondulações
do terreno, que não eram pequenas. Depois chamou os capitães,
fez o sorteio e, rapidamente, jogadores e audiência se posicionaram.
Os primeiros 15 minutos foram
meio emporcalhados. Bola de
barriga e espirradas pra cá e pra
lá não animaram muita gente...
Mas aos poucos os pés foram entrando em forma, as tabelas evoluíram, os times relaxaram, se espalharam e começaram a aparecer as chances de gol.
Numa dessas, um lançamento
encontrou Serginho Larica livre.
A bola pingou na altura exata para que ele enchesse o pé, pegando
de peito, e a mandasse queimando para a rede. Acontece que a liberdade da posição de Serginho
Larica tinha a ver com o fato de
estar impedido. Ou pelo menos
assim entenderam o bandeirinha,
que ergueu o braço, e o juiz, que
anulou o gol.
Serginho Larica não pode aceitar a marcação. Pegou a bola e jogou na direção do bandeirinha.
Um silvo de reprovação emergiu
num instante das laterais do
campo. O juiz, sem perceber o desgosto da torcida, botou Serginho
Larica para fora. Um cartão vermelho que ele nem viu, porque virou as costas, falou uns palavrões
e se mandou pavilhão adentro.
O jogo não deu em coisa melhor
até o final do primeiro tempo. No
intervalo cada um dos times se recolheu embaixo de uma trave, para que os treinadores trabalhassem com os jogadores. Havia uma
certa eletricidade que partia do
grupo do oito, chegava até o pavilhão onde Serginho Larica tinha
entrado batendo o pé e voltava
aos homens agitados.
Só o funcionário reparou nisso.
Achou melhor nem pensar e ficou
quieto.
Não adiantou. O segundo tempo ia pelo décimo minuto, quando Serginho Larica apareceu tremendo e cochichou no ouvido dele. O funcionário coçou a barba e
tomou uma atitude drástica, interrompendo a partida. Pegou
Serginho Larica pela mão e o levou até o juiz. O preso nem esperou:
- Seu Juiz, gostaria de pedir
desculpas...
O juiz, que entendia tanto o que
se passava quanto o tal roteirista,
não sabia o que desculpar. Afinal,
jogo é jogo e o que acontece em
campo nele acaba. Mas Serginho
Larica insistia. Muito:
- Eu preciso que o senhor me
desculpe... Olha... Eu preciso mesmo!
Então uma voz anônima ecoou
no meio da malandragem:
- O problema é ele não receber
bem as visitas. Quem é assim não
fica no nosso meio.
O juiz não precisou de muita
experiência no ambiente para entender a súbita importância do
seu perdão. Nervoso, perdoou logo. Bem alto, para que todo mundo (especialmente a "voz anônima") ouvisse.
É certo que "a voz" sentiu sua
melhor moral reestabelecida,
pois, mal o jogo recomeçou, ela
tornou a ecoar, dessa vez num
tom menos grave:
- Tá cancelada a encomenda!
Então a maioria se tranquilizou, pois ninguém ia ter o dia estragado pelo que vissem do que
era possível fazer com um homem
que não conhece a importância
de receber bem as visitas em casa.
(PS.: O jogo acabou zero a zero
mesmo, mas ali ninguém teve dúvida de que Serginho Larica foi
quem saiu ganhando.)
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