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CARLOS HEITOR CONY
Grandeza e decadência das assembléias
Pode ser fantasia, uma história inventada, mas que fazia sentido, pelo menos era provável. Na campanha eleitoral de
1989, quando Lula e Collor disputaram o segundo turno que acabou elegendo o pretendido caçador de marajás, as comitivas de
um e de outro candidato já não
tinham tempo de ir em casa, fazer
refeições normais, dormir em alguma coisa parecida com cama.
Viviam trepados e espremidos
nos jatinhos, indo de Manaus a
Uruguaiana, de Cuiabá a Fernando de Noronha. O apoio logístico de ambos funcionava no limite da exaustão e um dos problemas mais dramáticos era o das
refeições a bordo.
Liderando sua equipe, Collor de
repente determinava que estava
na hora de comer. Chamava o assessor e ordenava: "Sirva os sanduíches". O assessor perguntava:
"Qual deles? Presunto ou queijo?"
Collor respondia na hora: "Queijo". O assessor servia os sanduíches de queijo e todos comiam
sem reclamar. Ossos do ofício,
embora um sanduíche de queijo
não possa ser considerado um osso.
Na comitiva de Lula, o problema também surgia, ao menos
duas vezes ao dia. Só que o assessor, encarregado da alimentação,
não determinava o tipo de sanduíche a ser distribuído. Promovia uma assembléia para decidir
o que a maioria desejava, queijo
ou presunto. No final da campanha, já havia facções e subfacções
que defendiam ou atacavam um
ou outro sanduíche.
Verdade seja dita: na turma do
PT, nunca a vontade de um se impôs ao plenário. A assembléia era
soberana e seu pronunciamento,
irretratável.
O autoritarismo de uma equipe
e o assembleísmo de outra tiveram como consequência a vitória
de Collor -que deu no que deu.
Quanto ao PT, fiel às suas tradições democráticas, amargou mais
duas derrotas eleitorais até que
agora, de forma fulminante, chegou lá. E está armando suas equipes de transição e governo, absorvendo os aliados de sempre e os de
circunstância, que hoje parecem
formar a maioria.
Sempre ouvi dizer que, desde
1082, há quase mil anos, um grupo de monges e doutores nas Santas Escrituras se reúnem, geração
após geração, para chegar a uma
conclusão a respeito do sexo dos
anjos. Que houve alguma coisa
nesse sentido, houve, mas o pessoal mais responsável decidiu arquivar a questão e partir para outras, mais prementes e dramáticas. Um grupo xiita, contudo, decidiu continuar o debate, considerado fundamental. E os séculos se
passaram, outros monges e outros
doutores vieram, deram seus pareceres, e assim atravessaram o
segundo milênio e chegaram ao
terceiro sem encontrar uma solução.
Evidente que entre o sexo dos
anjos e um sanduíche de queijo
existem diferenças de fundo e forma, mas o que espanta é o processo de se chegar a uma decisão por
meio de consultas, de "vamos sentar à mesa".
Nunca participei de nenhum tipo de assembléia, seja para escolher um sanduíche ou proclamar
o sexo dos anjos. Mas durante os
anos de chumbo recebia convites,
apelos e até mesmo convocações
formais para comparecer a reuniões clandestinas destinadas a
formar a resistência contra o regime de força que vivíamos.
Levado por amigos, fui a algumas dessas assembléias, que começavam invariavelmente depois
da meia-noite, em lugares esquisitos e variáveis, desde uma igreja
no Leme até um depósito de
pneus velhos em Olaria. A ordem
do dia era incrementada. Se ninguém fizesse nada, nada aconteceria e o regime perduraria por
décadas. Mas fazer o quê? Luta
armada, atos terroristas, sabotagens, passeatas, mobilização dos
camponeses e operários?
Pensei que as alternativas seriam mais ou menos essas, pois
estavam no ar, havendo adeptos
de cada uma delas. Na primeira
reunião a que compareci, um dos
líderes da resistência tomou a palavra e, com argumentos buscados em Marx, Engels e Guevara,
disse que de nada adiantava uma
luta de libertação nacional sem
antes a formação de uma estratégia consensual. Foi ovacionado
pela assembléia, mas logo um outro líder, vindo de Belo Horizonte,
disse que o problema não era de
estratégia, mas de tática. E assim
passaram-se a primeira noite e as
seguintes, discutindo-se se a resistência devia adotar uma estratégia ou uma tática contra o regime
autoritário.
Na altura da quarta ou quinta
reunião, desisti de salvar o país
da opressão, fosse por meio de
uma tática ou de uma estratégia.
As opiniões se radicalizaram, surgiram insinuações torpes, descobriu-se que um cara era elemento
infiltrado pelo SNI, não tenho certeza, mas não ficaria admirado se
soubesse que, tantos anos passados, tantas mudanças ocorridas,
aquele pessoal ainda se reúne
com o mesmo entusiasmo para
decidir se deve adotar uma estratégia ou uma tática contra os regimes de força.
Bem, poderei ser acusado de ficar sempre em cima do muro, sem
assumir uma posição clara a respeito das questões fundamentais
de nosso tempo e do nosso povo.
Por isso, vou me manifestar pelo
menos sobre os problemas aqui
citados. Sou a favor do sanduíche
de presunto e acho que os anjos
são mulheres, uma espécie de
amazonas espirituais. Quanto à
estratégia, sou pela tática de esperar como ficam as coisas.
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