São Paulo, sexta-feira, 22 de novembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Grandeza e decadência das assembléias

Pode ser fantasia, uma história inventada, mas que fazia sentido, pelo menos era provável. Na campanha eleitoral de 1989, quando Lula e Collor disputaram o segundo turno que acabou elegendo o pretendido caçador de marajás, as comitivas de um e de outro candidato já não tinham tempo de ir em casa, fazer refeições normais, dormir em alguma coisa parecida com cama.
Viviam trepados e espremidos nos jatinhos, indo de Manaus a Uruguaiana, de Cuiabá a Fernando de Noronha. O apoio logístico de ambos funcionava no limite da exaustão e um dos problemas mais dramáticos era o das refeições a bordo.
Liderando sua equipe, Collor de repente determinava que estava na hora de comer. Chamava o assessor e ordenava: "Sirva os sanduíches". O assessor perguntava: "Qual deles? Presunto ou queijo?" Collor respondia na hora: "Queijo". O assessor servia os sanduíches de queijo e todos comiam sem reclamar. Ossos do ofício, embora um sanduíche de queijo não possa ser considerado um osso.
Na comitiva de Lula, o problema também surgia, ao menos duas vezes ao dia. Só que o assessor, encarregado da alimentação, não determinava o tipo de sanduíche a ser distribuído. Promovia uma assembléia para decidir o que a maioria desejava, queijo ou presunto. No final da campanha, já havia facções e subfacções que defendiam ou atacavam um ou outro sanduíche.
Verdade seja dita: na turma do PT, nunca a vontade de um se impôs ao plenário. A assembléia era soberana e seu pronunciamento, irretratável.
O autoritarismo de uma equipe e o assembleísmo de outra tiveram como consequência a vitória de Collor -que deu no que deu. Quanto ao PT, fiel às suas tradições democráticas, amargou mais duas derrotas eleitorais até que agora, de forma fulminante, chegou lá. E está armando suas equipes de transição e governo, absorvendo os aliados de sempre e os de circunstância, que hoje parecem formar a maioria.
Sempre ouvi dizer que, desde 1082, há quase mil anos, um grupo de monges e doutores nas Santas Escrituras se reúnem, geração após geração, para chegar a uma conclusão a respeito do sexo dos anjos. Que houve alguma coisa nesse sentido, houve, mas o pessoal mais responsável decidiu arquivar a questão e partir para outras, mais prementes e dramáticas. Um grupo xiita, contudo, decidiu continuar o debate, considerado fundamental. E os séculos se passaram, outros monges e outros doutores vieram, deram seus pareceres, e assim atravessaram o segundo milênio e chegaram ao terceiro sem encontrar uma solução.
Evidente que entre o sexo dos anjos e um sanduíche de queijo existem diferenças de fundo e forma, mas o que espanta é o processo de se chegar a uma decisão por meio de consultas, de "vamos sentar à mesa".
Nunca participei de nenhum tipo de assembléia, seja para escolher um sanduíche ou proclamar o sexo dos anjos. Mas durante os anos de chumbo recebia convites, apelos e até mesmo convocações formais para comparecer a reuniões clandestinas destinadas a formar a resistência contra o regime de força que vivíamos.
Levado por amigos, fui a algumas dessas assembléias, que começavam invariavelmente depois da meia-noite, em lugares esquisitos e variáveis, desde uma igreja no Leme até um depósito de pneus velhos em Olaria. A ordem do dia era incrementada. Se ninguém fizesse nada, nada aconteceria e o regime perduraria por décadas. Mas fazer o quê? Luta armada, atos terroristas, sabotagens, passeatas, mobilização dos camponeses e operários?
Pensei que as alternativas seriam mais ou menos essas, pois estavam no ar, havendo adeptos de cada uma delas. Na primeira reunião a que compareci, um dos líderes da resistência tomou a palavra e, com argumentos buscados em Marx, Engels e Guevara, disse que de nada adiantava uma luta de libertação nacional sem antes a formação de uma estratégia consensual. Foi ovacionado pela assembléia, mas logo um outro líder, vindo de Belo Horizonte, disse que o problema não era de estratégia, mas de tática. E assim passaram-se a primeira noite e as seguintes, discutindo-se se a resistência devia adotar uma estratégia ou uma tática contra o regime autoritário.
Na altura da quarta ou quinta reunião, desisti de salvar o país da opressão, fosse por meio de uma tática ou de uma estratégia. As opiniões se radicalizaram, surgiram insinuações torpes, descobriu-se que um cara era elemento infiltrado pelo SNI, não tenho certeza, mas não ficaria admirado se soubesse que, tantos anos passados, tantas mudanças ocorridas, aquele pessoal ainda se reúne com o mesmo entusiasmo para decidir se deve adotar uma estratégia ou uma tática contra os regimes de força.
Bem, poderei ser acusado de ficar sempre em cima do muro, sem assumir uma posição clara a respeito das questões fundamentais de nosso tempo e do nosso povo. Por isso, vou me manifestar pelo menos sobre os problemas aqui citados. Sou a favor do sanduíche de presunto e acho que os anjos são mulheres, uma espécie de amazonas espirituais. Quanto à estratégia, sou pela tática de esperar como ficam as coisas.


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