São Paulo, Quarta-feira, 22 de Dezembro de 1999


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MARCELO COELHO
Não quero nada disso de presente de Natal

Não sei se acontece com todo mundo, mas para mim não existe coisa menos sugestiva do que folhear as páginas e páginas de "sugestões" para presentes de Natal, publicadas nas revistas de grande circulação (a da Folha inclusive) nesta época do ano.
Por que eu haveria de querer um saca-rolhas de cristal, um pinguim de amianto, uma luminária de verniz, um celular transparente, um aquário de gelatina? Reconheço que a inutilidade desses presentes tem, contudo, seu significado estético. Entra-se no domínio do supérfluo, isto é, da arte, ou quase. Mas que tédio!
Em compensação, folheio o livro de Maureen Bisilliat, com fotos do "Pavilhão da Criatividade", do Memorial da América Latina (ed. Empresa das Artes), e encontro nas amostras de artesanato latino-americano ali documentadas a verdadeira lista de presentes que gostaria de encomendar a Papai Noel.
O presépio de Artur Pereira (escultor de Minas Gerais) talhado numa só peça de cedro; um "menino barrigudo", quase egípcio, do também mineiro João Pereira de Andrade; um touro de barro, quase marítimo, de Cuzco; os helicópteros feitos de cabaças laqueadas, do estado mexicano de Guerrero...
E até que sou muito desconfiado com relação a artesanato e arte popular. Lembro-me de ter escrito que, no fundo, toda arte popular é documento da opressão; apreciar suas formas toscas, sua simploriedade, sua feiúra mesmo, é sempre uma demonstração de esnobismo. Gostamos de determinada pintura ingênua, não pelo que ela pretende ser, mas pela inocência de sua pretensão. O paternalismo dessa atitude é condenável.
Tentando livrar-me desse patrulhismo ideológico, vejo e revejo as fotos de Maureen Bisilliat. As imagens irrompem sobre um fundo negro, como aparições fantasmagóricas. O uso, que podemos considerar ingênuo, de tantas cores berrantes nos bordados paraguaios e nos retábulos populares do Peru surge com uma tragicidade tremenda.
Resumindo: o feio se torna bonito, o feliz se torna triste.
Que estejamos acostumados à "feiúra" como valor estético, não é novidade: toda a arte moderna se encarregou desse feito. Resisto, contudo, a interpretar "esteticamente" o que há de tosco nessas cabaças e ídolos de barro. Henry Moore e Brancusi não estão longe de Caruaru; mas a aproximação é artificial.
O que há de dramático na arte popular latino-americana se perde nessa comparação, e o livro de Bisilliat realça, até com exagero, a estranheza do material fotografado.
É como se a utopia e o sonho surgissem no artesanato sob a forma da vingança, do pesadelo. Isso se aplica em especial à arte mexicana, congestionada de caveiras e festivais tétricos.
"Pavilhão da Criatividade" -o lugar no Memorial da América Latina onde se encontram essas obras de arte- é, convenhamos, um péssimo nome. Evoca o "Pavilhão de Cancerosos" de Solzhenitsyn. Mas essa arte folclórica, absolutamente inútil, tem mesmo algo de canceroso, como todo sonho. E algo de loucura, como tudo que é popular.
O livro de Bisilliat começa com um texto de Octavio Paz -erradíssimo, a meu ver. O poeta mexicano celebra a beleza do artesanato segundo critérios utilitários: os objetos cotidianos, vasos, cestas etc., são bonitos "não a despeito, mas sim graças a sua utilidade. (...) Sua beleza é inseparável de sua função".
Esse julgamento me revolta; é de uma frieza, de uma insensibilidade, de uma violência, que... melhor parar por aqui.
Digo apenas que um artista popular nunca se sentou na escola da Bauhaus, nunca teve acesso a Mondrian e a Mies van der Rohe. Seu propósito é oposto ao que imagina a frase de Octavio Paz. Trata-se, contra a utilidade do objeto que tem a construir, de enfeitá-lo; de cobri-lo de inutilidades; de dar expressão ao que está travado na garganta.
Daí o componente utópico dessas obras-primas muito malfeitas. O que há de tosco na feitura corresponde, na verdade, a uma bela revolta contra a matéria. O artista popular se confronta com a aspereza do mundo real, luta contra ele e produz algo que reflete esse drama entre a utopia e a indigência.
Termino com um exemplo. É a réplica, em barro pintado, de uma máquina fotográfica Nikkon, feita por Luiz Antônio da Silva, de Caruaru (página 28 do livro). O objeto técnico vira arte, e a pobreza material faz da máquina um objeto de culto.
Uma máquina fotográfica feita de barro: haverá algo de mais inútil, de mais artístico do que isso? Artístico não só no sentido de que é inútil. Mas também no quanto de dor que se expressa ali.
Não, pensando bem, não quero nada disso de presente de Natal.


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