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MARCELO COELHO
Não quero nada disso de presente de Natal
Não sei se acontece com todo
mundo, mas para mim não existe
coisa menos sugestiva do que folhear as páginas e páginas de "sugestões" para presentes de Natal,
publicadas nas revistas de grande
circulação (a da Folha inclusive)
nesta época do ano.
Por que eu haveria de querer
um saca-rolhas de cristal, um pinguim de amianto, uma luminária
de verniz, um celular transparente, um aquário de gelatina? Reconheço que a inutilidade desses
presentes tem, contudo, seu significado estético. Entra-se no domínio do supérfluo, isto é, da arte, ou
quase. Mas que tédio!
Em compensação, folheio o livro
de Maureen Bisilliat, com fotos do
"Pavilhão da Criatividade", do
Memorial da América Latina (ed.
Empresa das Artes), e encontro
nas amostras de artesanato latino-americano ali documentadas
a verdadeira lista de presentes
que gostaria de encomendar a Papai Noel.
O presépio de Artur Pereira (escultor de Minas Gerais) talhado
numa só peça de cedro; um "menino barrigudo", quase egípcio,
do também mineiro João Pereira
de Andrade; um touro de barro,
quase marítimo, de Cuzco; os helicópteros feitos de cabaças laqueadas, do estado mexicano de Guerrero...
E até que sou muito desconfiado
com relação a artesanato e arte
popular. Lembro-me de ter escrito
que, no fundo, toda arte popular é
documento da opressão; apreciar
suas formas toscas, sua simploriedade, sua feiúra mesmo, é sempre
uma demonstração de esnobismo.
Gostamos de determinada pintura ingênua, não pelo que ela pretende ser, mas pela inocência de
sua pretensão. O paternalismo
dessa atitude é condenável.
Tentando livrar-me desse patrulhismo ideológico, vejo e revejo
as fotos de Maureen Bisilliat. As
imagens irrompem sobre um fundo negro, como aparições fantasmagóricas. O uso, que podemos
considerar ingênuo, de tantas cores berrantes nos bordados paraguaios e nos retábulos populares
do Peru surge com uma tragicidade tremenda.
Resumindo: o feio se torna bonito, o feliz se torna triste.
Que estejamos acostumados à
"feiúra" como valor estético, não é
novidade: toda a arte moderna se
encarregou desse feito. Resisto,
contudo, a interpretar "esteticamente" o que há de tosco nessas
cabaças e ídolos de barro. Henry
Moore e Brancusi não estão longe
de Caruaru; mas a aproximação é
artificial.
O que há de dramático na arte
popular latino-americana se perde nessa comparação, e o livro de
Bisilliat realça, até com exagero, a
estranheza do material fotografado.
É como se a utopia e o sonho
surgissem no artesanato sob a forma da vingança, do pesadelo. Isso
se aplica em especial à arte mexicana, congestionada de caveiras e
festivais tétricos.
"Pavilhão da Criatividade" -o
lugar no Memorial da América
Latina onde se encontram essas
obras de arte- é, convenhamos,
um péssimo nome. Evoca o "Pavilhão de Cancerosos" de Solzhenitsyn. Mas essa arte folclórica,
absolutamente inútil, tem mesmo
algo de canceroso, como todo sonho. E algo de loucura, como tudo
que é popular.
O livro de Bisilliat começa com
um texto de Octavio Paz -erradíssimo, a meu ver. O poeta mexicano celebra a beleza do artesanato segundo critérios utilitários:
os objetos cotidianos, vasos, cestas
etc., são bonitos "não a despeito,
mas sim graças a sua utilidade.
(...) Sua beleza é inseparável de
sua função".
Esse julgamento me revolta; é de
uma frieza, de uma insensibilidade, de uma violência, que... melhor parar por aqui.
Digo apenas que um artista popular nunca se sentou na escola
da Bauhaus, nunca teve acesso a
Mondrian e a Mies van der Rohe.
Seu propósito é oposto ao que
imagina a frase de Octavio Paz.
Trata-se, contra a utilidade do
objeto que tem a construir, de enfeitá-lo; de cobri-lo de inutilidades; de dar expressão ao que está
travado na garganta.
Daí o componente utópico dessas obras-primas muito malfeitas.
O que há de tosco na feitura corresponde, na verdade, a uma bela
revolta contra a matéria. O artista
popular se confronta com a aspereza do mundo real, luta contra
ele e produz algo que reflete esse
drama entre a utopia e a indigência.
Termino com um exemplo. É a
réplica, em barro pintado, de uma
máquina fotográfica Nikkon, feita por Luiz Antônio da Silva, de
Caruaru (página 28 do livro). O
objeto técnico vira arte, e a pobreza material faz da máquina um
objeto de culto.
Uma máquina fotográfica feita
de barro: haverá algo de mais inútil, de mais artístico do que isso?
Artístico não só no sentido de que
é inútil. Mas também no quanto
de dor que se expressa ali.
Não, pensando bem, não quero
nada disso de presente de Natal.
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