São Paulo, sexta-feira, 22 de dezembro de 2000

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CARLOS HEITOR CONY

Notícia do Papai Noel em escombros

Como todo mundo, sempre que o Natal se aproxima recebo a visita obrigatória de imagens recorrentes que me acompanham desde lá longe, dos subterrâneos da infância. Imagens em geral boas, sentimentais, dessas que todos nos permitimos e que, pensando bem, não devem ser jogadas no lixo.
Cada vez mais conheço gente, de diversas faixas etárias, que, com alguma vergonha, confessa que não gosta do Natal, do clima festivo, familiar e cafona das ceias, dos presentes, dos cumprimentos, dos almoços de confraternização.
Há uma espécie de obrigação, de dever a cumprir em cada Natal. Devemos nos revestir de bons sentimentos, evitar confrontos com os outros, sejam os outros nossos filhos, nossas mulheres, nossos porteiros de edifício, nossos carteiros e lixeiros, os únicos que ainda mandam cartão para mim, desejando-me feliz Natal e próspero Ano Novo, uma forma decente de lembrar que eles são filhos de Deus e do Natal, serviram-me o ano todo e merecem um envelope com alguma coisa dentro.
O poeta Drummond colecionava esses cartões, gostava das mensagens que recebia de ""seu amigo, o carteiro". Um amigo sem rosto, que todos os dias nos traz alguma coisa e uma vez por ano nos lembra que é realmente nosso amigo, embora nem sempre nos traga boas notícias.
Nos romances de Dickens pode faltar tudo, menos um órfão e um Natal. Com isso, ele se fez, e são muitos os que o consideram como o melhor romancista da língua inglesa. Machado de Assis ficou famoso com o seu soneto sobre o Natal e com o seu conto ""Missa do Galo", uma de suas obras-primas, talvez o conto mais erótico de nossa literatura.
Taí uma coisa que não entendo. Não há festa menos erótica do que o Natal. Evidente que já tive meus momentos, aquele Natal em Cabo Frio, quando, de repente, deitado na areia da praia das Conchas, vi um céu todo estrelado por cima de nossos corpos cansados e nenhum anjo dando hosanas a Deus nas alturas.
Mas foi quase uma exceção. Lembro com mais nitidez a tarde de Natal em que me atrasei na cidade, um desses almoços do qual não se pode fugir. Quando saí do restaurante, em busca do carro que deixara na praça 15, notei que as ruas já estavam vazias, sujas de papel picado, um clima estranho de fim e de começo ao mesmo tempo. Era urgente que fosse correndo para casa, onde minhas filhas me esperavam e eu próprio esperava chegar.
Acho que não consegui chegar. Aconteceu uma coisa que mudou totalmente o meu Natal, não apenas aquele, mas todos os demais. Ao passar pela rua do Ouvidor, quase esquina com Gonçalves Dias, vi um Papai Noel destroçado, trôpego, com o rosto ainda lambuzado de vermelho, a roupa em frangalhos.
Contrariando a tradição e o design habitual, era um Papai Noel magro, subnutrido, arrastava um saco tão esfarrapado como ele. E o sininho que trazia, para chamar a atenção das crianças, estava quebrado, sem o êmbolo, não fazia som nenhum, era um sino fatigado e mudo, como o próprio Papai Noel que o trazia.
Acompanhei à distância aquele homem destroçado, mudei de itinerário por causa dele. E vi quando parou num canto da galeria dos Empregados do Comércio, ao lado da confeitaria Colombo. Tudo estava deserto, a galeria, a Colombo, a rua, a cidade inteira.
Parei também, atrás de uma árvore de Natal que haviam fincado na calçada. Senti-me sórdido, espionando um Papai Noel derrotado, o saco vazio, sujo, arrastado pelo chão como um fardo, e não como símbolo de sua função transitória.
E vi o Papai Noel encostar a cabeça na parede de uma sapataria, onde por sinal gostava de comprar os sapatinhos de minhas filhas. Ele começou a bater a testa contra a parede, com força crescente. Os italianos, quando estão muito aborrecidos consigo mesmos, costumam fazer isso, bater com a cabeça na parede, como autopunição e desabafo. Após o quê, vão à vida, aliviados e novamente em paz com o mundo e com eles próprios.
O Papai Noel em questão não parecia um italiano. Era amarelado, devia morar em Queimados, em Japeri, ou mais longe ainda. Talvez nem tivesse dinheiro para voltar para casa. E talvez nem tivesse casa para voltar.
Naquele tempo ainda não se falava em mercado de trabalho informal. Havia desemprego mesmo, e bicos esporádicos em época de eleições, no Carnaval, no período natalino. Aquele Papai Noel era um pioneiro, sem saber começava um novo ofício na acidentada economia nacional.
Bateu com a cabeça diversas vezes na parede, de repente parou. Olhou em volta, não viu ninguém. Achou inútil tudo aquilo, o saco esfarrapado e vazio, as botas pretas de material vagabundo, as roupas vermelhas, a barba postiça que estava tão suja como ele. Arrancou barba e botas, ficou descalço e imberbe -um Papai Noel que merecia um quadro de Chagall, voando sobre tetos de camponeses soterrados em suas casas cobertas de neve.
Papai Noel pela metade, ele seguiu para lugar nenhum. Qualquer destino que tomasse daria no mesmo para a sua disponibilidade. E eu segui o meu próprio caminho, voltando para casa. Mas voltei mesmo? Acho que não. Fiquei como o Papai Noel, em algum canto por aí, dando cabeçadas nas paredes do mundo.


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