São Paulo, sexta-feira, 22 de dezembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Futurópolis - O ano em que as vanguardas chegaram a São Paulo
Silvia Laraia Kawall/Reprodução
Carro participa de corrida nos anos 20, em foto do "Álbum Iconográfico da Avenida Paulista", de Benedito Lima de Toledo



ALCINO LEITE NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Quer espantar o tédio da chegada de 2001? Vá direto ao início de 1922. Em São Paulo, foi um começo de ano fervilhante, depois que um grupo de jovens artistas resolveu enfrentar de vez os "analfabetos letrados" e transformar a capital provinciana na "gloriosa terra dos avanguardistas".
"22 por 22 - A Semana de Arte Moderna Vista por Seus Contemporâneos", livro organizado por Maria Eugênia Boaventura, é o túnel do tempo para desembarcar naquele ano em plena "Futurópolis" da garoa, que não tinha então mais do que 580 mil habitantes.
Sim, as estantes estão recheadas de obras sobre o modernismo. Mas é a primeira vez que são reunidos em livro os artigos publicados na imprensa, no calor de 22, tanto pelos "futuristas" quanto por seus opositores.
"Carlos Gomes é horrível", escreve Oswald de Andrade num dos artigos. "De êxito em êxito, o nosso homem conseguiu difamar profundamente o seu país, fazendo-o conhecido através dos Peris de maiô cor de cuia e vistoso espanador na cabeça."
Mário de Andrade proclama: "Queremos ser atuais, livres de cânones gastos, incapazes de objetivar com exatidão o ímpeto feliz da modernidade".
São escritos de ocasião, panfletários e oportunistas, feitos para amealhar prestígio, convencer leitores, inflamar opiniões em revistas e jornais.
"22 por 22" é também um dos raros livros a documentar até agora algo da "história dos vencidos", ou seja, da visão dos antimodernistas da época.
No caso, gente célebre, como Lima Barreto, ou esquecida, como os jornalistas Mário Pinto Serva, Galvão Muniz e Oscar Guanabarino, às vezes mascarada com pseudônimos maliciosos, como O 3º Andrade ou I-Juca-Pirama.
Nas 460 páginas do livro -que abrange de 3 de janeiro a 14 de novembro de 1922-, 36 artigos são dos próprios "futuristas", 38 dos seus opositores, 15 são notas sociais saborosas a respeito da Semana e 30 são apenas notícias.
Nos três dias da Semana, uma exposição de pinturas e esculturas ocupou o hall do Teatro Municipal, com obras de Anita Malfatti, Brecheret, Di Cavalcanti etc.
No palco, foram lidos panfletos, palestras e poemas, por Graça Aranha, Oswald e Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho, Menotti del Picchia, Ribeiro Couto, entre outros. Os números musicais contaram com Heitor Villa-Lobos e a pianista Guiomar Novaes.

Livro reúne pela primeira vez os artigos sobre a Semana de Arte Moderna, editados na imprensa em 22

Mário de Andrade não tinha mais que 29 anos em 1922. Oswald beirava os 32. Menotti iria completar 30. Eram todos eles contemporâneos da avenida Paulista, que faria 31. E mais velhos que o Teatro Municipal, com 11 anos.
Os três escritores praticamente lideraram a investida jornalística, proclamando a morte do "deus parnasiano", difundindo as estéticas européias do cubismo e do expressionismo e pregando o nascimento do "neobrasileiro" de São Paulo, filho do automóvel, do cinema e das levas de imigrantes que chegavam à capital.
"Havemos de andar sempre 50 anos atrás dos outros povos?", explode Oswald num artigo. Parte da elite paulista, enriquecida com o comércio internacional do café, aplaudia -e abria a carteira para patrocinar a Semana e sua prometida modernização cultural da cidade, que só em 35 veria a criação da Universidade de São Paulo.
"No fundo, grande número de futuristas são simplesmente cabotinos, sem consciência do que dizem nem do que fazem, obedecendo a um impulso de exibição, convencidos de que, simplesmente por pertencerem a essa escola, atingiram a glória", escreve o "oposicionista" Pinto Serva.
Na "Careta", Ataka Perô dispara contra a Semana: "Comandavam o insensato pugilo de reformadores os quatro gênios da quadrilha: o Menotti cataglotista, os dois indecifráveis Andrades (o das banhas e o dos alentados queixos) e o complicado Brecheret... Do Rio veio o suave e melífluo Di Cavalcanti, especialista exímio em pinturas afresco, que foi arvorado em pajem dos gênios".
"São escritos de certa forma ingênuos e que não aprofundam as discussões estéticas", explica Maria Eugênia Boaventura, professora de literatura da Universidade de Campinas (Unicamp). "Mas são também muito interessantes do ponto de vista da construção do movimento e da maneira como tentam alavancar a cultura paulista numa época em que o Rio mandava no Brasil."
"22 por 22" começou a ser concebido há 30 anos, quando a baiana Maria Eugênia Boaventura iniciou em São Paulo seus estudos sobre o modernismo brasileiro, do qual ela viria a se tornar uma das principais pesquisadoras.
Antes desse livro, publicou "A Vanguarda Antropofágica" e "O Salão e a Selva", uma primorosa fotobiografia de Oswald de Andrade. Em 92, ela deu forma final ao volume, que ainda esperou oito anos para ser publicado.
O esforço de afirmação de São Paulo por meio da semana modernista é um dos aspectos mais interessantes de "22 por 22".
Escreve "A Gazeta", em 13 de fevereiro: "São Paulo toma pois também nas artes a dianteira arrogante que lhe cabe. A hegemonia artística da corte não existe mais".
Euforia que irritou o escritor Lima Barreto, que do Rio de Janeiro cravou sem dó na "Careta" de 22 de julho: "São Paulo tem a virtude de descobrir o mel do pão em ninho de coruja. De quando em quando, ele nos manda umas novidades velhas de 40 anos atrás".
Lima Barreto morreu em novembro de 1922 e não teve tempo de perceber que, daquela vez, sua ironia havia falhado.


Livro: 22 por 22
Organizadora: Maria Eugênia Boaventura
Editora: Edusp (tel. 0/xx/11/3818-4008)
Quanto: R$ 40 (462 págs.)




Texto Anterior: Teatro: Terminam inscrições para musical de Chico
Próximo Texto: Frase
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.