São Paulo, sábado, 22 de dezembro de 2007

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Crítica/"A Cidade e a Infância"

Obra de Luandino Vieira traz contrastes da Angola colonial

Escrita singular do autor influenciou nova geração de escritores de seu país e de Moçambique, como Mia Couto

BENJAMIN ABDALA JUNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

O conto "A Fronteira de Asfalto" tem no título uma das imagens centrais da coletânea "A Cidade e a Infância", do angolano José Luandino Vieira, agora editada no Brasil.
De um lado dessa fronteira, estava o mundo dos colonizadores portugueses, no período do pós-Segunda Guerra -a cidade do asfalto; de outro, a cidade angolana. A primeira, a cidade branca, matizada pelo autoritarismo repressivo da ditadura salazarista, impregnava-se de um racismo que não havia na segunda -uma cidade híbrida de pobres e de coexistência entre negros, brancos e mestiços.
Mediando criticamente as duas cidades, onde a primeira crescia física e simbolicamente sobre a segunda, estavam os cajueiros e a solidariedade de suas "sombras retorcidas".
Os cajueiros retorcidos (raízes e galhos) também aparecem como resistência natural numa "Grande Floresta" -memória mítica de um universo infantil de compartilhamento entre negros e brancos, ricos e pobres, que estava sendo ocupado pela cidade européia.
Os contos foram escritos entre os anos de 1954 e 1956 e a imagem do cajueiro pode ser associada ao intelectual da geração de José Luandino Vieira, que procurava deitar raízes na terra e resistia ao crescimento da cidade do asfalto.
Os tratores simbólicos destruíam as cubatas (casas) dos musseques (bairros populares, de ruas e linhas descontínuas) e também as árvores da "Grande Floresta" do imaginário infantil. Tratores coloniais que marcaram, depois, a história desse escritor e de seus livros.
Edições
Uma primeira tentativa de publicação de "A Cidade e a Infância" não passou das provas tipográficas em Luanda, quando o autor era ainda um jovem e estava concluindo o serviço militar, em 1957. Acabou por ser editada em Lisboa, em 1960, numa pequena edição, de circulação limitada, pela Casa dos Estudantes do Império -um núcleo anticolonial de onde saíram alguns dos principais líderes do movimentos de libertação dos países africanos de língua oficial portuguesa.
A segunda edição, definitiva, só seria publicada em 1977, na Angola independente, e quando o autor já estava consagrado como um importante escritor africano. Nesse período, preso duas vezes (em 1959 e de 1961 a 1972), escreveu a maior parte de suas obras, sobretudo no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Uma trajetória semelhante ocorreu igualmente com seu livro de contos "Luuanda", título grafado de acordo com o registro oral angolano, escrito na prisão da polícia política portuguesa em Luanda.
Numa das "estórias" dessa publicação, reaparece a imagem do cajueiro e dos tratores que procuravam destruí-lo. O livro veio a receber o prêmio de novelística da Sociedade Portuguesa de Autores. Conseqüência, o governo ditatorial mandou fechar a tradicional associação de escritores e prendeu membros do júri que atribuiu o prêmio. Os tratores e a resistência, envolvendo, assim, também escritores portugueses.

Consistência artística
Na obra posterior de José Luandino Vieira, a infância mítica e sua utopia libertária foram substituídas pela da cidade africana -os musseques, que já aparecem em "A Cidade e a Infância". Ao circular entre os dois espaços, a linguagem literária do escritor vai ganhando consistência artística, entre os repertórios das literaturas em língua portuguesa e os da oralidade, dos contadores tradicionais de "estórias" de seu país.
Estão aí em gestação técnicas literárias que singularizariam sua escrita, com repercussões na obra dos novos escritores de seu país e de Moçambique, entre eles Mia Couto: pensar o português com estruturas lingüísticas das línguas africanas, incorporando formas do imaginário das culturas em que elas se imbricam.
Como Guimarães Rosa, José Luandino Vieira denomina suas narrativas de "estórias", subtítulo das edições portuguesas e angolanas. Na edição brasileira, o subtítulo é "contos".
O escritor angolano conheceu a obra do autor brasileiro no campo de concentração do Tarrafal, quando leu "Sagarana", um presente de seu advogado, Eugênio Ferreira. Mais do que uma descoberta, foi uma identificação: encontrava, no escritor brasileiro, procedimentos literários semelhantes aos seus. Um respaldo para uma maior radicalização desses procedimentos, que marcaria sua obra posterior, onde "africaniza" a língua literária portuguesa, com uma dicção muito própria, criativa.


BENJAMIN ABDALA JUNIOR é professor de estudos comparados da USP

A CIDADE E A INFÂNCIA
Autor:
José Luandino Vieira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (136 págs.)
Avaliação: bom


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