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Crítica/"A Cidade e a Infância"
Obra de Luandino Vieira traz contrastes da Angola colonial
Escrita singular do autor influenciou nova geração de escritores de seu país e de Moçambique, como Mia Couto
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA
O conto "A Fronteira de
Asfalto" tem no título
uma das imagens centrais da coletânea "A Cidade e a
Infância", do angolano José
Luandino Vieira, agora editada
no Brasil.
De um lado dessa fronteira,
estava o mundo dos colonizadores portugueses, no período
do pós-Segunda Guerra -a cidade do asfalto; de outro, a cidade angolana.
A primeira, a cidade branca,
matizada pelo autoritarismo
repressivo da ditadura salazarista, impregnava-se de um racismo que não havia na segunda -uma cidade híbrida de pobres e de coexistência entre negros, brancos e mestiços.
Mediando criticamente as
duas cidades, onde a primeira
crescia física e simbolicamente
sobre a segunda, estavam os cajueiros e a solidariedade de
suas "sombras retorcidas".
Os cajueiros retorcidos (raízes e galhos) também aparecem como resistência natural
numa "Grande Floresta" -memória mítica de um universo
infantil de compartilhamento
entre negros e brancos, ricos e
pobres, que estava sendo ocupado pela cidade européia.
Os contos foram escritos entre os anos de 1954 e 1956 e a
imagem do cajueiro pode ser
associada ao intelectual da geração de José Luandino Vieira,
que procurava deitar raízes na
terra e resistia ao crescimento
da cidade do asfalto.
Os tratores simbólicos destruíam as cubatas (casas) dos
musseques (bairros populares,
de ruas e linhas descontínuas) e
também as árvores da "Grande
Floresta" do imaginário infantil. Tratores coloniais que marcaram, depois, a história desse
escritor e de seus livros.
Edições
Uma primeira tentativa de
publicação de "A Cidade e a Infância" não passou das provas
tipográficas em Luanda, quando o autor era ainda um jovem e
estava concluindo o serviço militar, em 1957.
Acabou por ser editada em
Lisboa, em 1960, numa pequena edição, de circulação limitada, pela Casa dos Estudantes do
Império -um núcleo anticolonial de onde saíram alguns dos
principais líderes do movimentos de libertação dos países
africanos de língua oficial portuguesa.
A segunda edição, definitiva,
só seria publicada em 1977, na
Angola independente, e quando o autor já estava consagrado
como um importante escritor
africano. Nesse período, preso
duas vezes (em 1959 e de 1961 a
1972), escreveu a maior parte
de suas obras, sobretudo no
campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde.
Uma trajetória semelhante
ocorreu igualmente com seu livro de contos "Luuanda", título
grafado de acordo com o registro oral angolano, escrito na
prisão da polícia política portuguesa em Luanda.
Numa das "estórias" dessa
publicação, reaparece a imagem do cajueiro e dos tratores
que procuravam destruí-lo. O
livro veio a receber o prêmio de
novelística da Sociedade Portuguesa de Autores.
Conseqüência, o governo ditatorial mandou fechar a tradicional associação de escritores
e prendeu membros do júri que
atribuiu o prêmio. Os tratores e
a resistência, envolvendo, assim, também escritores portugueses.
Consistência artística
Na obra posterior de José
Luandino Vieira, a infância mítica e sua utopia libertária foram substituídas pela da cidade
africana -os musseques, que já
aparecem em "A Cidade e a Infância".
Ao circular entre os dois espaços, a linguagem literária do
escritor vai ganhando consistência artística, entre os repertórios das literaturas em língua
portuguesa e os da oralidade,
dos contadores tradicionais de
"estórias" de seu país.
Estão aí em gestação técnicas
literárias que singularizariam
sua escrita, com repercussões
na obra dos novos escritores de
seu país e de Moçambique, entre eles Mia Couto: pensar o
português com estruturas lingüísticas das línguas africanas,
incorporando formas do imaginário das culturas em que elas
se imbricam.
Como Guimarães Rosa, José
Luandino Vieira denomina
suas narrativas de "estórias",
subtítulo das edições portuguesas e angolanas. Na edição brasileira, o subtítulo é "contos".
O escritor angolano conheceu a obra do autor brasileiro
no campo de concentração do
Tarrafal, quando leu "Sagarana", um presente de seu advogado, Eugênio Ferreira.
Mais do que uma descoberta,
foi uma identificação: encontrava, no escritor brasileiro,
procedimentos literários semelhantes aos seus. Um respaldo para uma maior radicalização desses procedimentos, que
marcaria sua obra posterior,
onde "africaniza" a língua literária portuguesa, com uma dicção muito própria, criativa.
BENJAMIN ABDALA JUNIOR é professor de estudos comparados da USP
A CIDADE E A INFÂNCIA
Autor: José Luandino Vieira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (136 págs.)
Avaliação: bom
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