São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2005

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FERREIRA GULLAR

Nós, reféns?

Estou seriamente desconfiado de que nós, cidadãos brasileiros, sem o percebermos, nos tornamos reféns dos políticos. Caímos numa armadilha.
Tempos atrás, concordamos que a sociedade se constituísse num Estado democrático, dirigido por representantes eleitos por nós -vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores e o presidente da República-, que estariam encarregados de fazer as leis que regeriam a sociedade e seriam obedecidas por todos, inclusive por eles. Diria, especialmente por eles, uma vez que neles depositamos nossa confiança e a eles transferimos o poder de gerir a nação, decidir nosso destino.
A idéia era, sem dúvida, muito boa: os cidadãos escolheriam livremente os candidatos que lhes inspirassem confiança, que lhes parecessem competentes e dedicados ao bem público, e a eles delegariam o poder de governar, ou seja, de trabalhar em benefício de todos nós, que os escolhemos, pagamos seus salários e arcamos com todas as despesas decorrentes do funcionamento da máquina governamental.
Como era de esperar, nem tudo correu às mil maravilhas, já que é mais fácil teorizar do que fazer: há as ambições escusas e os interesses, às vezes legítimos, às vezes não, enfim, uma quantidade de obstáculos a serem enfrentados e vencidos. Não obstante, continuamos a acreditar, a discutir, a votar, a reclamar e, sobretudo, a manter viva a esperança de que as coisas melhorem.
E acredito que tenham melhorado. Melhorou aqui, piorou ali, mas, no cômputo geral, em termos relativos, avançamos: há menos fome, caiu o índice de mortalidade infantil, melhoraram as condições no ensino fundamental, quase a totalidade das crianças está na escola, há mais tecnologia, mais produção agrícola, industrial, e o regime democrático consolidou-se.
Mas o país não deslancha. As dívidas interna e externa crescem e não sobra dinheiro para investir, para o país crescer e oferecer emprego aos milhões de jovens que chegam a cada ano ao mercado de trabalho, sem falar nos já desempregados. O que mais se ouve dos governantes é que não há dinheiro.
Pois é, não há dinheiro, mas eles continuam aumentando as despesas com a máquina administrativa, muitas vezes gastando com obras de fachada que nunca se concluem. Para deter a gastança desenfreada e irresponsável, criou-se a Lei de Responsabilidade Fiscal: governante que gastar e não pagar vai pra cadeia. O PT votou contra essa lei; eu a aplaudi e a maioria dos brasileiros minimamente esclarecidos também. Mas, agora, quando o mandato dos prefeitos chegou ao fim, o que se vê é o descalabro: centenas de prefeituras inadimplentes ou falidas, isso sem falar nos lances inacreditáveis do prefeito que sumiu com todo o dinheiro da prefeitura, outro que deixou caminhões, ambulâncias e carros do município em estado de sucata, outro que sumiu com os computadores do gabinete, outro que apagou dos computadores todas as informações relativas a contas e verbas disponíveis.
E eu então me pergunto: será que vai acontecer alguma coisa a essa gente? Irão para a cadeia os prefeitos que descumpriram a Lei de Responsabilidade Fiscal ou vai ficar tudo por isso mesmo? A lei que nasceu para deter a gastança irresponsável será revogada na prática?
Como se vê, parece que chegamos a um impasse, mesmo porque, se o novo prefeito não pagar as contas que tem com a União, esta não lhe repassará as verbas de que necessita para manter a máquina municipal funcionando e assim deixará de pagar o funcionalismo, as dívidas com os fornecedores... Instalar-se-á o caos administrativo.
Pois bem, no instante mesmo em que esse quadro é exposto pela imprensa, os deputados federais preparam-se para aumentar os seus gastos. Na última sessão do ano de 2004, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados aumentou o valor da verba indenizatória -dinheiro para pagar no Estado do deputado despesas com aluguel de escritório, funcionários, combustível, locação de veículos, hotel, restaurante etc.-, o que representará um custo adicional de R$ 18,5 milhões por ano; além desse aumento, já está pronto para ser aprovado um projeto de resolução que passa de R$ 35 mil para R$ 45 mil a verba de cada deputado, que agora, em vez de 20, poderá contratar 25 funcionários para seu gabinete, que já não comportava os 20... Tudo isso feito de comum acordo, por cima de princípios e divergências ideológicas, como parte das negociações para eleger o novo presidente da Câmara. A nós caberá pagar a conta.
Que fazer em face disso, se eles é que criam as leis, aumentam seus ganhos e privilégios e se põem de acordo quando se trata de decidir em causa própria? A sensação que temos nós, cidadãos, é que estamos nas mãos deles como reféns. Não é que nos tenham seqüestrado fisicamente: seqüestraram nossos direitos.
Não deve o leitor concluir, em face de tais abusos, que a democracia faliu. Estou apenas resmungando para ver se os políticos se tocam e evitam que ela vá mesmo à falência.


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