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FERREIRA GULLAR
Nós, reféns?
Estou seriamente desconfiado de que nós, cidadãos brasileiros, sem o percebermos, nos
tornamos reféns dos políticos.
Caímos numa armadilha.
Tempos atrás, concordamos
que a sociedade se constituísse
num Estado democrático, dirigido por representantes eleitos por
nós -vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores e
o presidente da República-, que
estariam encarregados de fazer as
leis que regeriam a sociedade e seriam obedecidas por todos, inclusive por eles. Diria, especialmente
por eles, uma vez que neles depositamos nossa confiança e a eles
transferimos o poder de gerir a
nação, decidir nosso destino.
A idéia era, sem dúvida, muito
boa: os cidadãos escolheriam livremente os candidatos que lhes
inspirassem confiança, que lhes
parecessem competentes e dedicados ao bem público, e a eles delegariam o poder de governar, ou
seja, de trabalhar em benefício de
todos nós, que os escolhemos, pagamos seus salários e arcamos
com todas as despesas decorrentes
do funcionamento da máquina
governamental.
Como era de esperar, nem tudo
correu às mil maravilhas, já que é
mais fácil teorizar do que fazer:
há as ambições escusas e os interesses, às vezes legítimos, às vezes
não, enfim, uma quantidade de
obstáculos a serem enfrentados e
vencidos. Não obstante, continuamos a acreditar, a discutir, a
votar, a reclamar e, sobretudo, a
manter viva a esperança de que
as coisas melhorem.
E acredito que tenham melhorado. Melhorou aqui, piorou ali,
mas, no cômputo geral, em termos relativos, avançamos: há menos fome, caiu o índice de mortalidade infantil, melhoraram as
condições no ensino fundamental, quase a totalidade das crianças está na escola, há mais tecnologia, mais produção agrícola, industrial, e o regime democrático
consolidou-se.
Mas o país não deslancha. As
dívidas interna e externa crescem
e não sobra dinheiro para investir, para o país crescer e oferecer
emprego aos milhões de jovens
que chegam a cada ano ao mercado de trabalho, sem falar nos já
desempregados. O que mais se
ouve dos governantes é que não
há dinheiro.
Pois é, não há dinheiro, mas eles
continuam aumentando as despesas com a máquina administrativa, muitas vezes gastando
com obras de fachada que nunca
se concluem. Para deter a gastança desenfreada e irresponsável,
criou-se a Lei de Responsabilidade Fiscal: governante que gastar e
não pagar vai pra cadeia. O PT
votou contra essa lei; eu a aplaudi
e a maioria dos brasileiros minimamente esclarecidos também.
Mas, agora, quando o mandato
dos prefeitos chegou ao fim, o que
se vê é o descalabro: centenas de
prefeituras inadimplentes ou falidas, isso sem falar nos lances inacreditáveis do prefeito que sumiu
com todo o dinheiro da prefeitura, outro que deixou caminhões,
ambulâncias e carros do município em estado de sucata, outro
que sumiu com os computadores
do gabinete, outro que apagou
dos computadores todas as informações relativas a contas e verbas
disponíveis.
E eu então me pergunto: será
que vai acontecer alguma coisa a
essa gente? Irão para a cadeia os
prefeitos que descumpriram a Lei
de Responsabilidade Fiscal ou vai
ficar tudo por isso mesmo? A lei
que nasceu para deter a gastança
irresponsável será revogada na
prática?
Como se vê, parece que chegamos a um impasse, mesmo porque, se o novo prefeito não pagar
as contas que tem com a União,
esta não lhe repassará as verbas
de que necessita para manter a
máquina municipal funcionando
e assim deixará de pagar o funcionalismo, as dívidas com os fornecedores... Instalar-se-á o caos
administrativo.
Pois bem, no instante mesmo
em que esse quadro é exposto pela
imprensa, os deputados federais
preparam-se para aumentar os
seus gastos. Na última sessão do
ano de 2004, a Mesa Diretora da
Câmara dos Deputados aumentou o valor da verba indenizatória -dinheiro para pagar no Estado do deputado despesas com
aluguel de escritório, funcionários, combustível, locação de veículos, hotel, restaurante etc.-, o
que representará um custo adicional de R$ 18,5 milhões por ano;
além desse aumento, já está pronto para ser aprovado um projeto
de resolução que passa de R$ 35
mil para R$ 45 mil a verba de cada deputado, que agora, em vez
de 20, poderá contratar 25 funcionários para seu gabinete, que já
não comportava os 20... Tudo isso
feito de comum acordo, por cima
de princípios e divergências ideológicas, como parte das negociações para eleger o novo presidente
da Câmara. A nós caberá pagar a
conta.
Que fazer em face disso, se eles é
que criam as leis, aumentam seus
ganhos e privilégios e se põem de
acordo quando se trata de decidir
em causa própria? A sensação
que temos nós, cidadãos, é que estamos nas mãos deles como reféns. Não é que nos tenham seqüestrado fisicamente: seqüestraram nossos direitos.
Não deve o leitor concluir, em
face de tais abusos, que a democracia faliu. Estou apenas resmungando para ver se os políticos
se tocam e evitam que ela vá mesmo à falência.
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